35ª Bienal de São Paulo
6 set a 10 dez 2023
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São Paulo
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Quais movimentos compõem as coreografias do impossível? – Movimento 2

Para a 35ª edição da Bienal de São Paulo, as publicações educativas estão sendo realizadas de modo processual, por meio de edições que se complementam e se revelam ao longo da construção das coreografias do impossível. Nossa proposta é que este conjunto de movimentos – modo como denominamos os volumes que compõem a série – seja um convite e um chamado à ação, em que as práticas artísticas se tornam fundamentais na construção de conhecimentos que se baseiam em troca, compartilhamento, experimentação e estudo.

Com a chegada deste segundo movimento, a noção espiralar que fundamenta o projeto da 35ª Bienal transborda o pensamento teórico e constrói, na prática, as nossas metodologias. São ferramentas que não somente nos ajudaram a criar narrativas para a exposição, mas, também, nos levaram a repensar as formas de produção e de transmissão dos conhecimentos produzidos até agora.

Essa aprendizagem se reflete no título-pensamento da artista Rosana Paulino, que diz meu modo de pensar é um pensar coletivo / antes de estar em mim já esteve nelas.1 Nessa reflexão, a artista, para além de apresentar uma ideia acerca dessas metodologias, reforça como essa ideia foi criada e enunciada a partir de um encontro proposto coletivamente com a pensadora Sueli Carneiro e a equipe de educação da Fundação Bienal, em uma tarde de sábado. Em meio aos desenhos de Paulino, repletos de mulheres búfalas, jatobás e imagens de seu livro ¿História natural? (2016), aprendemos que é possível pensar um “conhecimento que coloque o sujeito dentro da natureza e não acima dela”.2

Os espaços espirais, nos quais a natureza e a ancestralidade são protagonistas, são também os caminhos que Daniel Lie escolhe para questionar o “cistema” hegemônico heteronormativo e a “ótica a partir da qual a humanidade é hierarquicamente entendida como o centro” 3. Através da instalação Outres, na qual seres não humanos e mais-que-humanos habitam e deslocam a centralidade humana, Lie questiona: “Como pensar agência, como pensar direitos, como pensar essa outra perspectiva de seres além de humanes enquanto seres humanos ainda não têm, totalmente, direitos humanos?”4

Esse modo categórico, determinista e binário que a linearidade do tempo ocidental e o pensamento moderno impõem entre a razão e o sentir, humanidade e natureza, corpo e mente, também está em suspenso na escrita da pensadora e psicóloga guarani Geni Núñez, que expande os debates acerca de um ideal normativo de gênero e de sexualidade.

Foi a partir do diálogo com o livro The Lesbiana’s Guide to Catholic School, da escritora Sonora Reyes − romance que narra a história de uma garota mexicana queer de dezesseis anos e as descobertas sobre sua sexualidade em uma escola católica −, que Núñez aceitou o desafio de escrever um texto que abordasse criticamente como a naturalização das diferenças entre os sexos, baseadas em uma definição biológica, faz da heterossexualidade, supostamente, a única e legítima forma de amar e se relacionar. Um “normal” que causa impacto na vida profissional, nas escolhas pessoais, nos comportamentos cotidianos e na saúde mental de jovens e adultos LGBTQIAP+ no ambiente escolar. Como questiona Paulino: “Será mesmo a ciência a luz da verdade”?

Esse tensionamento aparece em Sauna lésbica, projeto que integra a lista de participantes da 35ª Bienal, ao propor um exercício de imaginação radical que pergunta: “Imagine se existisse uma sauna lésbica?” Por meio dessa interrogação, a Sauna nos estimula a romper com os estereótipos e com aquilo que poderíamos imaginar − mas que a obra, por sua capacidade disruptiva, arrisca, tensiona e subverte.

Essas iniciativas que se somam a muitas outras, como a oficina de lambe-lambe realizada com professores e educadores, e que deu voz ao cartaz sim LGBTQIAP+ · na escola · em todo lugar. Esse gesto reaproximou a equipe de educação da Bienal do Núcleo de Gênero e Diversidade da Secretaria Municipal de Educação de São Paulo, com o intuito de pensar ações que ampliem os modos de abordar gênero e sexualidade nas escolas. Ações que têm como objetivo evitar reações semelhantes às que descreve Geni Núñez, quando nas primeiras linha do seu texto exclama: “Como queria ter lido isso antes!”

Considerando que a violência é fundante na construção daquilo que acreditamos ser o “diferente”, a artista, cineasta e pesquisadora Trinh T. Minh-ha problematiza o modo como representamos esse “outro” no cinema e no audiovisual. No texto “De fora para dentro, de dentro para fora”, a autora apresenta diferentes perspectivas sobre o que significa “colocar-se na pele do outro”, mostrando como a diferença “representa um problema, senão uma ameaça, em termos de classificação e de controle”. Esses sistemas de regulação encontram ressonância na obra pink-blue [rosa-azul] (2017), da artista Kapwani Kiwanga, em que as luzes rosa e azul transcendem seus significados normativos e escondem sofisticadas tecnologias de vigilância.

A importância de pensarmos os direitos dos povos indígenas é destaque nos “dispositivos artísticos pensando a educação como coletividade”, criados por Denilson Baniwa. Em sua ação, o artista disponibiliza QR codes inspirados em grafismos indígenas que nos levam a informações relacionadas a seu projeto para a 35ª Bienal. Assim como esse trabalho pode ser encontrado na plataforma on-line movimentos, também é possível acessar a audiodescrição poética, realizada em colaboração com a Mais Diferenças, na qual apresentamos, para videntes e não videntes, as obras de Aurora Cursino e de Ceija Stojka. Essas são pintoras que, apesar de terem vivido em épocas distintas, encontraram na expressão artística modos de “retirar do silêncio o relato do horror”, combinando “memória e imaginação em imagens e palavras”.

Olhando para os trânsitos afro-atlânticos, convidamos a pesquisadora e curadora Kênia Freitas para refletir a respeito de outro encontro. Dessa vez, entre os artistas Sarah Maldoror e Wifredo Lam, “uma aliança forjada há mais de três décadas entre utopias surrealistas e revolucionárias de toda parte e de lugar nenhum − Guadalupe, Cuba, China França, Argélia, Angola e tantos outros lugares por se reimaginar e libertar”. Mediante uma “fabulação crítica”,5 Freitas nos ajuda a aprofundar como se daria o encontro entre o cinema e as artes visuais, bem como entre “sonhos e lutas de descolonização como beleza e ação”. 

Com base nesse amplo trabalho de pesquisa realizado com o Educativo, dos intensos debates feitos a partir dos textos, das prazerosas mas também desafiadoras sessões de criação e dos enfrentamentos que foram necessários para sustentar aquilo em que acreditamos, fica nosso agradecimento às autoras, artistas e pensadoras que aceitaram o desafio de atualizar, reler, traduzir ou desenvolver os pensamentos e diálogos inéditos reunidos nesta publicação.

A gente se despede com a força do que ficou das paredes da memória da conversa entre Rosana Paulino e Sueli Carneiro, quando esta última, antes de partir, deixou as pistas para o nosso próximo movimento: “nós não temos um drama, temos uma luta!”

    • Composição de frases de Rosana Paulino registradas em visita da equipe de Educação da Fundação Bienal de São Paulo ao ateliê da artista, em 10 de março de 2023.
    • Ibid.
    • Transcrição de trechos da entrevista de Daniel Lie concedida à equipe de Educação, realizada no Pavilhão da Bienal em 14 de março de 2023. Ver p. 55 deste volume.
    • Ibid.
    • Referência ao conceito amplamente elaborado pela pensadora Saidiya Hartman.