35ª Bienal de São Paulo
6 set a 10 dez 2023
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São Paulo
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Vista de obras de Aurora Cursino dos Santos na 35ª Bienal de São Paulo – coreografias do impossível © Levi Fanan / Fundação Bienal de São Paulo

Aurora Cursino dos Santos

Com quantas facadas se faz essa dor? e quantas pinceladas, para desfazê-la? há tantos olhos, nas pinturas, quase tantos quanto há palavras – mais, ou menos legíveis. os olhos parecem olhar de lá, do antes quando foram pintados, se o agora trouxe alguma novidade, menos facadas, menos sangue derramado, menos dessa dor. 

É uma dor de muitos nomes: machismo, misoginia, patriarcado, opressão, violação, desrespeito, desumanização… alguns dos pares de olhos traduzem alguns desses nomes, se você prestar atenção, se você tiver coragem de olhar de volta lá dentro deles, dentro dos quadros, dentro do tempo que tentou de tantas formas, tantas vezes, calar Aurora (1896-1959). 

Profecias, devaneios, desconjuros, previsões. um desejo: prever-se um futuro feliz. a arte de fugir dos destinos programados para o fim. para a servidão. para a violência. para a dor. 

Um pouco antes da virada do século, nasce Aurora. naquele tempo, a categorização via suposta biologia era ainda mais rígida que agora: e Aurora nasce menina. menina filha de uma mãe, e de um pai. 

E quando essa menina vira moça, o pai obriga a moça a se casar. mas a moça é drapetômana! dada às fugas, às derivas, aos destinos reescritos pelo traçado próprio do desejo.1 

Aurora foge, se separa, tenta de um tudo nessa vida: inclusive as artes, nas europas, pois que sonha, e os sonhos também têm fome. uma fome dessas é que deve tê-la levado à profissão que dizem a mais antiga do mundo, não? tão antiga quanto aquela dor? mais antiga? profissões, servidões: esposa, puta, doméstica. inadequações: louca. 

Mas Aurora, antiga, contam seus quadros, ia meio que prevendo um mundo novo, por mais que escombros, que ruínas de mundos tão arcaicos, tão demorados de passar, a tentassem soterrar: 

Talvez seja meu devaneio, meu desejo, mas parece que, além de tantas facadas, os tantos olhos que pintou buscam vestígio desse mundo-sonho – em que mulheres, qualquer profissão que tenham (ou não), independentemente do quanto tentem os muros das casas de patroa, das celas manicomiais, estrangular, sufocar, silenciar… um mundo em que qualquer mulher, por mais indigna que seja considerada, “psicopática amoral”, possa prever-se futuro feliz. 

& eu sonho junto.

tatiana nascimento

1. Os poucos e incertos dados biográficos de Aurora Cursino dos Santos estão sinalizados nas suas pinturas e desenhos, quase sempre autorreferenciados, habitando um lugar entre a memória e o delírio. Estão também presentes em relatos médicos e documentos psiquiátricos que, como todo arquivo da violência, excedem pela parcialidade e exigem uma leitura desconfiada e crítica. [n.e.]

Aurora Cursino dos Santos (São José dos Campos, SP, Brasil, 1896 – Franco da Rocha, SP, Brasil, 1959) pintou suas obras durante seu tempo de internação no Complexo Psiquiátrico do Juquery, no contexto das iniciativas de arteterapia da Escola Livre de Artes Plásticas dirigida por Osório Cesar. Suas obras, que por vezes abordam temáticas como sexo e violência, carregam as memórias e as marcas de uma vida de luta contra o patriarcado. Entre as exposições e instituições que já receberam suas obras estão: 11ª Bienal de Berlim (Alemanha), MAM-SP, IMS São Paulo, MAC-USP, 16ª Bienal de São Paulo e MASP (Brasil) e a Exposição Internacional de Arte Psicopatológica (Paris, França). Suas obras fazem parte do Museu de Arte Osório Cesar, em Franco da Rocha.