35ª Bienal de São Paulo
6 set a 10 dez 2023
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São Paulo
6 set a 10 dez
2023
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O fogo ou a água podem destruir tudo o que você tem

Liguei pra uma conhecida e perguntei: “Você não vai pra escola hoje?”. Ela disse que naquele dia iria ficar em casa porque precisava ter certeza se a água ia consumir tudo o que ela tinha dentro do barraco. O pior de tudo foi ela ter tido a certeza de que sim, a água contaminada ia consumir até a última peça de roupa dela.

“Quais histórias vocês têm ouvido ultimamente?” Faço a pergunta e aviso que a sala em que vamos entrar é uma sala que conta histórias. Nisso, escuto de alguém: “Que pergunta difícil…”. Eu sei. De qualquer modo, todos entram e fazem o que eu já imaginava, fazem fotos. Fazem muitas fotos. Observam as obras com os olhos arregalados e com uma expressão facial de dúvida. Eles ficam encantados, porque a escola faz poucos passeios. A verba escassa não permite.

Cinco minutos se passam e eu peço pra que uma roda seja feita. Todos se sentam e eu pergunto o que eles observaram na sala. “Pô, é uma parede cheia de fotografia. Tem várias pessoas em cada quadradinho.” “É? E como são essas pessoas nos quadrados?” “São, em grande parte, pretas.” Plim. “Tem pessoas velhas e tem pessoas novas.” Plim.

Preciso me conter porque a linha de raciocínio sendo seguida me deixa animada. “E nos tecidos?” “Parece que os tecidos tão contando histórias.”

Falo sobre Rosana Paulino e sua obra intitulada Parede da memória (1994-2015). Proponho um exercício de contação de histórias. Pode ser qualquer história, contanto que seja de família ou que eles considerem importante. Histórias são compartilhadas pelos alunos e, dentro delas, insiro a história de Arthur Bispo do Rosário. Um menino chamado Tales se expressa corporalmente, como quem precisa falar antes que esqueça o que custou a pensar. “Sabe o Pico do Jaraguá? Então, há um tempo atrás, lá era terra indígena. Tinha muitos indígenas lá. O tempo foi passando e a gente (da favela) foi ocupando esse lugar. Mas, assim, não que a gente tenha expulsado eles. Eles continuam lá, só que em grupos menores.” É um coletivo que insiste em ficar. Nesse momento, eu entendi de fato o que respondi quando me perguntaram na entrevista o que era mediação pra mim. “É a construção de uma ponte entre dois mundos que podem ser distintos ou iguais.”

Naquele dia tive mais certeza do que eu sempre pensei. Que, quando me formasse, daria aula só em escola pública, porque sei que lá existem singularidades formadas no mesmo contexto que o meu. Em um contexto que o ensino é de difícil acesso. Que o básico não é garantido. Que a escola não leva a gente a passeios porque a grana é curta. Que estar em uma Bienal é a coreografia mais impossível de se realizar.

Grupos como esse e mediações como essa me fazem sentir que as duas horas no transporte público valeram a pena. Mas houve dias em que essas duas horas não foram bem aproveitadas. Vieram grupos/pessoas que não tinham o mínimo de interesse em me ouvir ou ouvir a pessoa que ali também mediava comigo. Nesses grupos, eu entendia que existem ouvidos que não escutam e bocas que sempre mandam.

Acredito naquele ditado que se pá nasceu na periferia: o mundão dá dessas. Num dia, você atende um grupo com o qual a identificação transborda e, no outro, atende um grupo que nem consegue olhar no seu olho. E tá suave, porque, quando o mundão dá dessas, é pra servir de aprendizado, tá ligado?