35ª Bienal de São Paulo
6 set a 10 dez 2023
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São Paulo
6 set a 10 dez
2023
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Registro da visita TURVO ESQUECIDO: mitologias água~mar. Mediação na instalação Montando a história da vida (2023) de Castiel Vitorino Brasileiro.
Foto: © Levi Fanan / Fundação Bienal de São Paulo

TURVO ESQUECIDO: mitologias água~mar

Em roda, no centro do pavimento azul, a conversa tinha como ponto de partida trocar uma memória trançada junto à água – relatos que rodopiavam por entre memórias de infância, deslocamentos e recortes da vida em outras partes. Ao nosso redor, a presença dos seres de Guadalupe Maravilla nos abraçavam quase como testemunhas, escribas ou amplificadores das sensações.

Olhando para Disease Throwers 1 em espelho com os mares e lendo suas formas, nos debruçávamos em diálogos sobre ecossistemas aquosos, corais e seres vivos marinhos que portam em si a potência de transmutação e não raramente apropriam-se de resíduos para criação de novos organismos. Transformando aquilo que se apresenta como resto ou rastro de processos anteriores em novos arcos e potências. 

Outro diálogo visual parecia apontar para as nossas próprias vísceras, encontraríamos ali nossa torrente, a água nas entranhas. Maravilla traz à superfície genealogias fictícias e autobiográficas, compartilhando como os traumas do abuso sistêmico de pessoas imigrantes se manifestam diretamente no corpo – nas águas do corpo. As grandes esculturas, chamadas também de máquinas de cura, nos lembravam que a vibração através do som afeta diretamente nossas águas internas, provocando diálogos sobre a cura enquanto método, mas também caminho de confluências que processualmente se somam, como os rios.

Falamos sobre como esse contato profundo com as águas nas entranhas pode acontecer de forma coletiva, assim como Guadalupe compartilha na ativação de suas obras – nutrindo narrativas coletivas de trauma em celebrações de perseverança e humanidade, 2 – uma tentativa de encontrar novas vibrações e frequências através do som. Ondas mais brandas para cuidar e traduzir o acúmulo que em nós se faz.

Desaguamos na instalação Zumbi Zumbi Eterno (…) (2023), de Julien Creuzet, questionando em qual território havíamos adentrado. Uma nuvem? Cachoeira? Oceano?. As estruturas descontínuas que edificam o trabalho ora eram lidas enquanto espinhas de peixe, ora como remanescentes plásticos ao mar. Pode ser tênue e difusa a noção deste espaço, assim como abrir os olhos dentro da água. Conversamos sobre o mar como um não-lugar, sobre como o movimento entre águas dissolve noções de nação, onde as linhas imaginárias que delimitam a separação de territórios se tornam, justamente, ainda mais imaginárias, invisíveis e inviáveis. 

Pode o não-lugar ser ponto de partida e referência para o pensar? No mar, nossas entidades se encontram e fundem uma orquestra onde o sal e a espuma emaranham a textura de um manto –  manto do impossível, do mistério.

Diante de Montando a história da vida 3 a visão que se apresenta é suspensa em temporalidades. Ruína? Edificação? Museu? Vemos em cena esses tempos colidirem. Seria o museu feito do encontro entre ruínas e edificações? Essa sobreposição translúcida entre a memória e o desejo?

a obra de Castiel um barco adormece guardião – sem remo, deriva ou oceano. Sem a presença d’água, ao que é devoto um barco? Repousa cansado mas ainda apaixonado pelo mar. Sem a presença d’água, quais novas missões ou contornos guardam seu casco? Repousa cansado, ainda apaixonado. Conversamos sobre a possibilidade de ali descansar desperto um cemitério, talvez um grande mar – Ka’Lunga. Nos colocamos a remoer a memória das matérias presentes, atestando como de alguma forma, integralmente passaram por transformações vividas em água – a terra que floresce umedecida, o tijolo que um dia foi barro, as pinturas decorridas de pigmentos fluídos, os troncos de eucalipto anteriormente árvores, e antes disso grãos…

Registro da visita TURVO ESQUECIDO: mitologias água~mar. Mediação na instalação Montando a história da vida (2023) de Castiel Vitorino Brasileiro. Foto: © Levi Fanan / Fundação Bienal de São Paulo


Albatroz! Albatroz! águia do oceano / Tu que dormes das nuvens entre as gazas / Sacode as penas, Leviathan do espaço / Albatroz! Albatroz! dá-me estas asas 4

Em eco ouvimos uma voz soar ao adentrarmos Sumidouro n°2 – Diáspora fantasma, 5 trajeto que fazemos em silenciosos olhares entre-cortados pelas cortinas. Leviatã se revela, conhecido como monstruosidade marinha, peixe-dragão, serpente feroz citada no Antigo Testamento e em outros pares escritos. Ao passo que experimentamos esse labirinto, corporificamos as coreografias costuradas com o que vemos e o que nos olha, acompanhados por presenças de outra ordem, ocultas, fantasmagóricas. 

Fundem-se o demônio marinho Leviatã e a praga do navio negreiro em um só ser, sublinhando também nas águas o lastro das violências raciais. A palha da costa, por sua vez, narra o processo de secagem e desidratação de folhas fibras de ráfia. Na conversa farfalham pelas esferas simbólicas contidas em sua dimensão espiritual entrelaçada a purificação, transcendência, proteção e Omolu, orixá da cura.

Finalizamos à deriva em Highway Gothic6 e mais uma vez com seres aquáticos e biomórficos ao nosso redor em uma intensa presença iluminada pelo azul das cianotipias que tomam todo espaço. Novamente em roda, permitimos a profusão dos deslocamentos eclodirem e a obra dar continuidade a conversas atentas aos traumas e implicações resultantes dos terrores raciais, ambientais e de gênero absorvidos pelo mar. Desta vez, como sugestão para a mediação,  experimentamos olhar para o trabalho partindo das provocações 

– O que continuamos sem saber desses mares?
– O que ainda desconhecemos das águas?

Ousamos esboçar outras imaginações políticas de cura, encontro e alianças multiespécies.

 

    • Esculturas em grande escala do artista Guadalupe Maravilla, (2019–), apresentadas na 35ª Bienal.
    • Trecho adaptado da biografia enviada pelo artista à equipe de produção da 35ª Bienal.
    • Instalação de Castiel Vitorino Brasileiro para a 35ª Bienal, 2023.
    • Trecho do poema O navio negreiro de Castro Alves, disponível em < http://www.dominiopublico.gov.br/download/texto/bv000068.pdf >
    • Instalação de Diego Araúja e Laís Machado para a 35ª Bienal, 2023.
    • Instalação multimídia de Ellen Gallagher e Edgar Cleijne (2017) apresentada na 35ª Bienal.