35ª Bienal de São Paulo
6 set a 10 dez 2023
Entrada gratuita
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35ª Bienal de
São Paulo
6 set a 10 dez
2023
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Detalhe da instalação do Archivo de la Memoria Trans

Gênero: Entre pessoas, documentos e outras espécies

“Qual seu nome e quais pronomes você utiliza?” Foi assim que escolhemos iniciar a conversa. Essa escolha refletia os lugares de onde partia a visita: lugares inquietos, mediante a partilha de desconfortos e estranhamentos entre duas identidades transmasculinas que trabalhavam lado a lado. De certa forma, perguntávamos aquilo que gostaríamos que nos perguntassem.

Era importante que o convite ao diálogo seguisse, desde o início, o princípio de um compromisso com a escuta e o respeito às identidades que ali se dispunham a estar. Por ser uma visita que propunha tensionar impressões e expandir nossas relações com a ideia de gênero, o acolhimento dos corpos visitantes e de suas expectativas quanto ao tema era nosso principal desejo. Imaginar um rosto, reivindicar um nome, subverter lógicas de pertencimento e elaborar novas definições para arquivo e memória eram algumas das intenções que permeavam a visita.

todo mundo tem nomes mais verdadeiros
que escapam aos papéis
os nomes que lhe deram por amor
os nomes que lhe deram por temor
os nomes que lhe deram por (não)
fazer parte
os nomes que lhe deram aos
sussurros
os nomes que lhe deram aos
gemidos
os nomes que lhe deram aos berros
os nomes que se dão no silêncio,
na madrugada, quando longe dos
olhares 1

O que nos mobilizaria a propor um diálogo entre a figura masculina colonizadora (Antonio de Erauso, presente no retrato por Juan Van der Hammen e na videoinstalação de Cabello/Carceller) e uma figura feminina escravizada (Xica Manicongo)? Tensionar lugares preestabelecidos se torna necessário nesses momentos de construção coletiva em que traçamos novas compreensões de ser e de estar no mundo, reconsiderando essas identidades negadas. Ao propormos pensar novas definições para arquivo e memória − que sejam diferentes daquelas que a história oficial elenca em sua metodologia de apagamentos −, deparamos com novas maneiras de interpretar documentos.

Ao perguntarmos aos visitantes que significado tinham as palavras arquivo e memória, suas respostas desenhavam relações quase antagônicas. Enquanto o arquivo era algo externo, um lugar estático e aproximado de “algo que a gente guarda, mas não mostra”, como disse Pedro, a memória “existe dentro de mim, como se ela estivesse distribuída em partes do meu corpo e eu pudesse acessá-las nesses lugares. Percebo a memória na minha pele, no meu estômago, nos meus pés e em todos os meus sentidos. A memória é corpo”, como afirmou Júlia.

A instalação do Archivo de la Memoria Trans foi, desse modo, crucial para que surgissem novas interpretações de palavras que compõem nossos vocabulários. Dispostos pelas paredes e no chão, os formatos de documentação constroem uma composição homogênea e não hierárquica. Entre fotografias pessoais, cartas e notícias de jornais que se sobrepõem umas às outras, a complexidade identitária que se constrói coletivamente se evidencia de maneira sensível, rompendo a lógica de registro de um arquivo estático. O espaço foi acessado de forma dinâmica pelos visitantes, que se sentiram acolhidos por sua estética relacionada muito mais a um quarto de adolescente, colorido e afetivo, do que a uma reserva técnica que cataloga e acumula registros que não dialogam com ninguém.

Registro da visita © Levi Fanan / Fundação Bienal de São Paulo


Construir novas conexões e historicizar delimitações fizeram parte dessa mobilização assentada na mediação, bem como traçar novos contornos que circunscrevem vivências múltiplas. Estabelecer diferentes possibilidades de contato; reivindicar outras formas de estar no mundo; compartilhar desejos e angústias; tudo isso fez parte do que sempre foi um convite ao encontro.

    • Trecho do poema “ter muitos nomes v.3”, de Diana Salu, in Nina Maria, “Sete poemas de Diana Salu”. Ruído Manifesto, 20 out. 2023. Disponível em ruidomanifesto.org/sete-poemas-de-diana-salu/. Acesso em 2023.