35ª Bienal de São Paulo
6 set a 10 dez 2023
Entrada gratuita
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35ª Bienal de
São Paulo
6 set a 10 dez
2023
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Allan da Rosa durante o encontro © Iza Guedes / Fundação Bienal de São Paulo

Djunta Mon nas coreografias do impossível

29 de abril de 2023 “No contexto das artes negras, das comunidades negras, das culturas negras que habitam todas as quebradas, habitam todos os terreiros de reinado, os terreiros de jongo, os terreiros de candomblé […] só é arte, gente, se for um bem. Mas não um bem em mercadoria. Um bem que é uma oferenda. Um benefício para o coletivo.”1

Esse trecho da fala de Leda Maria Martins no evento de lançamento do primeiro movimento da publicação educativa ressoaram diversas vezes nas ações de difusão que realizamos ao longo de 2023, reproduzidos na voz da autora. Sempre produzindo atravessamentos e reações, como a de uma professora da rede municipal de Cubatão (SP), que me procurou depois do encontro para dizer que, enquanto ouvia a fala de Leda, percebeu que estava chorando sem entender por quê. Já havia entendido.

Em poucas palavras, Leda Maria Martins traça uma teoria estética que reposiciona o conceito de arte e o modo como podemos nos relacionar com a arte. Abro este relato dessa forma por dois motivos. Primeiro, porque acredito que a relação que surgiu entre as pessoas que formam o Coletivo Djunta Mon e a equipe de educação da Bienal se guiou inspirada por esse reposicionamento proposto por Leda Maria Martins. Segundo, porque no mesmo dia em que ouvi aquelas palavras dela, conheci Paulo Rafael da Silva e Rosseline Tavares, que estavam na plateia, também se encantando com a sabedoria da Rainha de Nossa Senhora das Mercês do Reinado do Jatobá. Naquele momento, partilhando o café oferecido depois do encontro, trocamos contatos visando a uma futura colaboração. 

25 de julho de 2023 Ao redor da mesa na cozinha da sede da Soweto − Organização Negra,2 localizada na rua Silveira Martins, na Sé, partilhando outra vez um café, aquela primeira conversa começou a tomar forma mediante um projeto redigido por Paulo e Rosseline para uma caminhada em territórios sem chão, buscando fortalecer a memória coletiva das populações negras e os movimentos sociais na região da Baixada do Glicério. Além de saber mais sobre o projeto de Educação Patrimonial e Ambiental Baixada do Glicério Viva, realizado por Rosseline, eu e Danilo Pera, assessor da equipe de educação, conhecemos Alva Helena de Almeida, presidenta da Soweto, Luzia Rosa e Maria Baú, atrizes que integram o coletivo Sá Menina,3 da Vila Nhocuné, Zona Leste de São Paulo; Marquinhos, artista da pintura mural que trabalhava na decoração da nova sede da Soweto; o poeta Romildo Ibeji e outras pessoas que foram até lá para nos encontrar e imaginar o que a equipe de educação da Bienal e o Coletivo Djunta Mon poderiam coreografar juntos. Aqui, numa coreografia de retornos, dançar é inscrever no tempo, nosso primeiro movimento da publicação educativa, circulou na mesa, com muitos desejos e ideias. Nos tempos e nas possibilidades das coreografias do impossível, algumas danças se inscreveram. Outras, quem sabe, irão se inscrever nos volteios de outros tempos.

14 de setembro de 2023 A articulação do Coletivo Djunta Mon nos levou da Sé para o Jardim Fontalis, Zona Norte de São Paulo. De uma reunião virtual com os professores Rodrigo Pignatari e Ricardo Yuzo Nakanishi, da EMEF Hipólito José da Costa, surgiu uma etapa do nosso projeto Bienal nas Escolas. Renato Lopes, também assessor de nossa equipe, e eu fomos até a EMEF Hipólito para apresentar o que é a Bienal e algo das coreografias do impossível para um grupo de cerca de vinte estudantes que participam dos projetos desenvolvidos por Rodrigo e Ricardo. Sabíamos que a poesia habitava as vidas daquele grupo e que o dia de nossa ida era o dia do Slam da Hipólito. Nas impossibilidades do tempo e das distâncias geográficas, perdemos o Slam, mas recebemos o acolhimento, a escuta e o interesse dessxs jovens poetas pelo que existe dentro daquela caixa de concreto no Ibirapuera, a quase trinta quilômetros dali. Levamos também a poesia de Ricardo Aleixo e Maurinete Lima, com as ações da Frente 3 de Fevereiro. A palavra coreografada em performances e intervenções antirracistas na cidade. Presenças nas coreografias do impossível, enfrentamentos com as muitas dimensões físicas e simbólicas do genocídio da população negra periférica, vivências que surgem com força nas vozes afiadas dxs poetas do Jardim Fontalis.

24 de outubro de 2023 Parte de nossa proposta com o projeto Bienal nas Escolas é não apenas ir aos territórios de escolas distantes do Parque Ibirapuera para contar sobre a Bienal, mas também criar condições para que essas escolas visitem a mostra. No caso da EMEF Hipólito, com a parceria dos professores Rodrigo e Ricardo e da coordenação da escola, percebemos que era possível imaginar algo mais. Djunta mon. Juntar as coreografias do impossível. Trazer o Slam da EMEF Hipólito para a 35ª Bienal como ativação proposta pela equipe de educação. Pensar uma colaboração com a Cozinha da Ocupação 9 de Julho que não se resumisse ao oferecimento do almoço (o que não é pouca coisa), mas que fosse uma aproximação desse grupo com o trabalho realizado pelo Movimento dos Sem Teto do Centro (MSTC), na luta por muitos direitos: moradia, cultura, educação, alimentação. Nossa parceira dentro da Cozinha, Cacá Mousinho, abraçou a ideia com entusiasmo, o que nos possibilitou construir um programa para que um grupo de cerca de quarenta estudantes permanecesse na 35ª Bienal das 10h às 16h, participando de uma oficina e de um almoço no espaço da Cozinha, explorando as coreografias do impossível em duas visitas com a equipe de mediação e ocupando o Parliament of Ghosts [Parlamento de fantasmas] (2023), projeto do artista Ibrahim Mahama, com uma mostra de curtas realizados pelos estudantes em projeto coordenado pelo professor Rodrigo e uma edição especial do Slam da Hipólito.

“Eu digo que sou, eu digo que é SAGAZ, VORAZ, INSÓLITO, SLAM DO HIPÓLITO!”

Para quem quiser conhecer mais a poesia do Jardim Fontalis, Poesias libertárias. Soltando versos e rimas é o título do livro organizado por Walkiria dos Santos e Ricardo Yuzo Nakanishi, que reúne a produção dos jovens poetas da EMEF Hipólito e alguns dxs versos que ressoaram no Pavilhão da Bienal.

Vista da escultura da sambista Madrinha Eunice, durante o encontro. Foto: © Iza Guedes/Fundação Bienal de São Paulo


11 de novembro de 2023 A caminhada pelas regiões da Sé, da Liberdade e da Baixada do Glicério vem sendo uma prática de educação patrimonial e antirracista realizada regularmente por algumas das pessoas que participam do coletivo Djunta Mon, como Rosseline, Paulo Rafael e Romildo. Foi por meio dessa prática que Paulo e Rosseline buscaram se aproximar da 35ª Bienal, ao nos enviar a proposta de ação Caminhada Educativa em Territórios sem chão. O título da proposta parte de uma frase de Thiago Vinícius de Paula, em seu texto “um sentido”, escrito para o primeiro movimento da nossa publicação educativa. Vale lembrar: “A gente que vive na quebrada toca o impossível toda hora. A gente coreografa uma dança sem chão, a gente toca o tambor, a gente se aquilomba para tentar superar nossa própria extinção todo dia”. 4 Da periferia para o centro, as danças sem chão, o toque dos tambores, o aquilombamento seguem nas coreografias para tocar o impossível a todo momento. 

Coreografar possibilidades é brincar através da música, do futebol de várzea, do samba, da poesia, do canto, da festa, da tiririca, da ginga, do tambu, do bumbo, da umbigada, da graça e da malícia, da fantasia, da alegoria do sonho, do desejo de seguir imaginando. É o corpo da mulher preta no terreiro que busca o movimento, a ancestralidade, o fluxo e a impermanência da gira.

É confrontar radicalmente os regimes de verdade sugerindo patrimônios incômodos, museus vivos. É estabelecer relações com humanos e não humanos, com o sagrado, bichos, plantas e minerais. Tia Ciata e Madrinha Eunice se encontraram em quintais e encruzilhadas, exu-zando pro samba como se fosse um blues. E como já dizia a outra madrinha, a Elza: Exu nas escolas e nas rezas.5

De vários encontros, a caminhada em territórios sem chão foi tomando corpo. Em um domingo de manhã, Dia dos Pais, nos encontramos na estátua de Madrinha Eunice, na praça da Liberdade, passamos pela Capela dos Aflitos, falamos de São Chaguinhas, seguimos para a encruzilhada de cinco caminhos, onde terminam as lanternas orientais e começam outras histórias. 

Descemos, chegamos à União Social dos Imigrantes Haitianos, na Vila dos Estudantes, onde encontramos Jean Wilnick Cadet e conhecemos o trabalho da Rádio TV Citadelle. Depois, na rua dos Estudantes, encontramos o bailarino, coreógrafo, percussionista e contador de histórias Aboubacar Sidibé, imigrante da Guiné Conacri, que nos apresentou o trabalho desenvolvido pelo Centro Cultural da Guiné pelo fortalecimento das tradições e culturas dos imigrantes de diferentes nações do continente africano no território da Baixada do Glicério. O tempo todo, a caminhada foi pontuada pelas informações e histórias trazidas por Rosseline e Paulo, pelas memórias trazidas por Suelma Deus, secretária geral da Soweto, e pelas palavras manejadas habilmente nas performances poéticas sempre impressionantes de Romildo.

A potência dessa caminhada em territórios sem chão nos atravessou com força. E o cruzamento dos caminhos de nossos estudos da obra do educador e escritor Allan da Rosa, que participou do curso de formação para a equipe de mediação, levou a um novo (re)encontro. Djunta Mon com Allan da Rosa nas coreografias do impossível. Zanzar: águas de caminhos pretos. Em seu canal do Instagram, da Rosa registrou: 

Cismar, Zanzar. Pedagoginga.

Hoje com a @sowetoorganizacao negra, o movimento @baixadadoglicerioviva, coçando o educativo da 35° @bienalsaopaulo Teoria Suada. Rua escola. Imaginário da boca do estômago. Maloca Studies. Arte/Educação em Ninhos e Revides.

Cismar com a modernagem e a eugenia que basearam essas metrópoles. Cismar com as prosas entre quem desejava erguer castelos alforriados e quem na vadiação se protegia dos cacetes. Suas estéticas de jogo, de charada, de finta, de coro. De grave e distorção, de rodeio e ponteira.

Cismar com a paisagem urbana e a rural e os incêndios, namoros e sequestros de barões contemplados do alto tomado das igrejas, lugares de cazuá e de cafua. Cismar com a alfabetização subterrânea nas confrarias negras. Com os clarins e os dedilhados dos barbeiros sangradores que tomavam as escadarias dos festejos. Com o surrealismo preto antes da palavra surrealismo brotar no norte. Com a imaginação de navalha rasgando mundos invisíveis e trançando reinados. Com Madrinha Eunice e a Lavapés. Com a segunda-feira dia dos aflitos, das velas e da estia apaziguando antigas tretas de morte.

Zanzar e pensar as correntes de vento socorrendo fugitivos mutilados e vingativos. Zanzar e ganhar o sol que fervia as latas de fezes carregadas na cuca dos Tigres, os linha-de-frente da desgraçada limpeza da cidade. Zanzar pelas pontes dos tachos de bolinho de peixe do rio Anhanga assados por Sinhanas e Avelinas. Zanzar entre os largos dos enforcados daqui da Liberdade e os quadros pintados por militares ingleses com as forcas haitianas nos pescoços militares franceses. Educação de sensibilidades. Perguntar pra ficção o que ela cozinhou das mentirosas memórias que se acreditam (mesmo) verídicas.6

Oficina de dança da Guiné Conacri com Aboubacar Sidibé. Foto: © Levi Fanan/Fundação Bienal de São Paulo


2 de dezembro de 2023 Tarde de sol iluminando e aquecendo o Parliament of Ghosts [Parlamento de fantasmas], de Ibrahim Mahama. Coreografando danças sem chão com o Coletivo Djunta Mon e grande elenco: Almir Rosa como mestre de cerimônias sem cerimônias; o locutor Osmar Santos, homenageado da tarde por suas coreografias de cura por meio da pintura; a performance de Luzia Rosa e Maria Baú trazendo à cena um encontro entre Carolina Maria de Jesus e Carolina Noémia de Sousa; Renato Gama cantando “Neguinha Sim!”; o mestre-sala Claudio Adão riscando o chão com seus passos flutuantes no dia do Samba; uma palinha do sarau da EMEF Hipólito; a apresentação do minidocumentário sobre a Baixada do Glicério, dirigido por Lúcio Telles; Romildo Ibeji, Marcelo Lemos e Lucas Scaravelli, poetas da Soweto, coreografando palavras lidas e improvisadas; os tambores, cantos e danças ancestrais da Guiné Conacri, com Aboubacar Sidibé. 

Nesse ponto, me deparo com o limite deste relato, com a impossibilidade de alinhar palavras que expressem a energia que circulou entre as pessoas que participaram de algum modo, por todo ou por algum tempo, dessa celebração das danças sem chão pelo Coletivo Djunta Mon. Prefiro passar a palavra a Romildo Ibeji e a Paulo Rafael, mesmo que nestas linhas não sejamos tocados pela beleza de suas vozes e corpos em performance.

A poesia de Romildo e a palavra de Paulo Rafael no Centro Cultural Viela em Dia de Lua somam-se a outros registros que documentam as coreografias de danças sem chão que uniram a equipe de educação da Bienal e o Coletivo Djunta Mon, acesse neste link.

 

    • Encontro de lançamento da publicação educativa: primeiro movimento, com Leda Maria Martins e Thiago Vinícius de Paula, em 29 abril 2023. Disponível em: www.youtube.com/ watch?v=G_Ug-3SgyKc. Acesso em 2023.
    • Atuante há 32 anos, a Soweto − Organização Negra é uma organização da sociedade civil sem fins lucrativos para a defesa dos direitos da população negra. Para saber mais, acesse: www.soweto.org.br.
    • Criada em 2014, a produtora cultural Sá Menina tem o propósito de elaborar e executar projetos artísticos afrocentrados. Para saber mais, acesse: www.samenina.com.
    • Thiago Vinicius de Paula e Agência Solano Trindade, “Um sentido”, in Aqui, numa coreografia de retornos, dançar é inscrever no tempo: publicação educativa da 35ª Bienal: coreografias do impossível. São Paulo: Fundação Bienal de São Paulo, 2023, p. 94.
    • Trecho da proposta de ação Caminhada Educativa em Territórios sem chão, por Paulo Rafael da Silva e Rosseline Tavares, para a 35ª Bienal.
    • Allan da Rosa, texto da postagem “Cismar, Zanzar. Pedagoginga […]”. Instagram @darosaallan, 12 nov. 2023. Disponível em: www.instagram. com/p/CzhxIzuthqI/?img_index=1. Acesso em: 2023.