35ª Bienal de São Paulo
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Lam e Maldoror: descolonização como beleza e ação

Wifredo Lam Ilustração do artista para o livro Fata Morgana, de André Breton (1941) Sem título, 1940-1941 Lápis e nanquim sobre papel 31 x 24 cm Galerie 1900-2000, Paris © Wifredo Lam / AUTVIS, Brasil, 2023

Fundo preto. No compasso da batida dos tambores, as criaturas nos olham. Esculturas densas: meio humanas, meio mitológicas, meio bichos. Sombrias e imponentes, e, acima de tudo, estranhas. Belamente estranhas. As personagens aparecem e desaparecem em um jogo de sombra e luz, foco e desfoco. Com elas, aos poucos, nos olham também as pinturas em livros e em telas. Figuras de corpos alongados, com membros fragmentados, partes que se repetem e se sobrepõem. Aos poucos esses seres tomam forma – deixam a escuridão e ganham contornos –, pois foram brevemente capturados no curto filme de Sarah Maldoror gravado em 1980, em homenagem a Wifredo Lam. Nesse filme, a câmera de Maldoror se move simulando os movimentos desses seres estranhos, conduzindo o olhar de quem assiste a percorrer de diversas maneiras essas geografias corporais inesperadas – pernas que se transformam em braços, pés que são como cabeças. Por um breve instante, a voz over tenta se fixar – conta que Lam é pintor-escultor afrocubano, de pai chinês e mãe negra, um surrealista caribenho radicado na França. Descobrimos que a reunião das criaturas se deve a uma exposição de trabalhos do artista. Mas nada disso interrompe o fluxo de olhares que atravessam a tela. Nesses poucos minutos, de forma generosa, o filme de Maldoror aterra no contexto e deixa que as criaturas de Lam indaguem (e olhem) por elas próprias.

Entre Maldoror e Lam, uma aliança forjada há mais de três décadas entre utopias surrealistas e revolucionárias de toda parte e de lugar nenhum − Guadalupe, Cuba, China, França, Argélia, Angola e tantos outros lugares por se reimaginar e libertar. Sonhos e lutas de descolonização como beleza e ação. Um cubano afro-asiático luta ao lado dos republicanos na guerra civil espanhola. Uma franco-antilhana, no Movimento Popular de Libertação de Angola. Ambos sem contornos e fronteiras. A arte é política e pessoal − e coletiva e andarilha. Habitada por poesia e criaturas estranhas e belas.

1956. A livraria Présence Africaine [Presença Africana] era um baobá africano e afrodiaspórico (re)plantado no meio do bairro parisiense Quartier Latin. Em sua grande sombra esbarravam-se jovens estudantes, artistas, escritores de África, do Caribe, das Américas. Entre os jovens discípulos do fundador do espaço cultural, o senegalês Alioune Diop (1910-1980), estavam Sarah Maldoror e sua trupe transnacional da companhia teatral Les Griots [Os griôs] − Ababacar Samb-Makharam (Senegal), Toto Bissainthe (Haiti) e Timité Bassori (Costa do Marfim). As histórias que esses jovens queriam contar passavam pelo desejo de construção de um teatro negro moderno − afirmando um lugar para as atrizes e os atores negros para além das personagens serviçais. Se o jazz e as danças negras já habitavam a paisagem cultural de Paris, os griôs desejavam estabelecer um lugar para as artes dramáticas. (E ninguém iria supor, naquele momento, que dois dos griôs, Maldoror e Bassori, enveredariam anos depois para o campo do cinema.) Inexperientes e ambiciosos, os griôs lançaram-se então em cursos de atuação, formações pagas e públicas, ensaios projetos. Nos intervalos, participavam das atividades regulares da Présence Africaine. Estiveram lá acompanhando as alegrias e desavenças do Primeiro Congresso de Escritores e Artistas Negros em Paris. (Será que os griôs também pensaram como poderia ter sido se o escritor W. E. B. Dubois não tivesse sido impedido pelo governo dos Estados Unidos de viajar para o evento? Será que então os negros estadunidenses poderiam ter se sentido menos estadunidenses negros? Será que, anos depois, olhando para a famosa foto do encontro com os 63 delegados do Congresso e apenas uma mulher, Maldoror se ressentiu desse apagamento?) E como será que o já reconhecido Lam se sentiu ao ser abordado pelos inexperientes e ambiciosos griôs, quando encomendaram ao artista o cartaz da peça de estreia? Um cartaz de Lam para a peça Huis Clos [Entre quatro paredes], de Jean-Paul Sartre – eis uma chegada de impacto para a recém-criada companhia de teatro negra. E que criaturas Lam pode ter inventado para esse cartaz? Obra que hoje é apenas uma menção em textos sem imagens do registro. Entre quatro paredes, quatro jovens negros reivindicavam sua possibilidade de também performar a crise existencial do sujeito moderno? Será que as criaturas eram fragmentos de pedaços desses sujeitos estilhaçados? Será que eram híbridos trans-humanos, nem bichos nem deuses?

Anos mais tarde, Maldoror deixa Paris para estudar cinema em Moscou e depois fazer filmes por onde os sonhos de libertação estivessem pulsando. Lam permanece em Paris − fazendo surgir mais criaturas expatriadas, de toda parte.

Sobre a autoria

Kênia Freitas é curadora e programadora do Cinema do Dragão, Centro Dragão do Mar de Arte e Cultura (CDMAC, Fortaleza, CE). Doutora em comunicação e cultura pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ, Rio de Janeiro, RJ), é pesquisadora independente com foco em afrofuturismo, cinemas negros, curadoria e crítica de cinema. Integra o Forúm Itinerante de Cinema Negro (FICINE).

Sarah Maldoror foi poeta e cineasta, tendo dirigido mais de vinte filmes de ficção e documentários. Seu primeiro curta-metragem, Monangambé (1968), vencedor do festival de Cannes, e o longa Sambizanga (1972) são baseados em obras do escritor Luandino Vieira. Em 1956, foi uma das fundadoras da companhia de teatro negra Les Griots, em Paris.

Wifredo Lam foi um proeminente artista cubano conhecido por misturar distintas influências africanas, caribenhas e surrealistas. Sua obra incorporou uma fusão única de várias influências modernistas e explorou temas como identidade, espiritualidade e justiça social. O trabalho de Lam, feito predominantemente de pinturas, pode ser encontrado em coleções do mundo todo, incluindo de instituições como o Museo de Arte Latinoamericano de Buenos Aires, MoMA (Nova York), Centre Pompidou (Paris) e Tate Modern (Londres).