35th Bienal de São Paulo
6 Set to 10 Dec 2023
Free Admission
A+
A-
35th Bienal de
São Paulo
6 Set to 10 Dec
2023
Menu

Zumví: O arquivo que conserva as memórias de resistências negras

As famílias negras no Brasil não têm muitos registros, principalmente o pessoal da minha geração dos anos 1970 para trás… lembro de ir com minha irmã, que era um pouco mais velha do que eu, tirar uma foto, a gente juntava um dinheiro, se arrumava todo pra fazer a foto, mas [isso] não era habitual entre os pretos. 1

— Lázaro Roberto Ferreira dos Santos

Na Bahia existe uma imensa produção de imagens publicadas com caras negras anônimas e sobre a cultura negra, mas, em sua maioria, não são registradas informações de quem são essas pessoas. Mas quando os negros assumem a autoria na fotografia? Você conhece algum fotógrafo negro ou alguma fotógrafa negra? Talvez José Ezelino, Januário Garcia, Walter Firmo, Bauer Sá, Lita Cerqueira, Eustáquio Neves, Rita Cliff, Jônatas Conceição, Lázaro Roberto, Raimundo Monteiro e Aldemar Marques, entre outros. Porém, no Brasil, existe uma grande lacuna quanto à produção intelectual negra no campo das imagens.

Na maioria das vezes, os fotógrafos negros e negras caem no ostracismo por não conseguirem espaço no cenário cultural para expor suas obras ou publicarem livros, por perderem seus arquivos por falta de armazenamento correto ou serem obrigados a doá-los para instituições públicas e privadas que têm mais equipamentos técnicos de conservação e armazenagem.

resistências negras

O surgimento do Bloco Afro Ilê Aiyê em 1974, há cinquenta anos, e principalmente seu primeiro desfile no Carnaval de Salvador de 1975, causou um grande alvoroço na sociedade baiana, pois trazia em todos os aspectos o discurso racial engajado de forma latente, na voz, na indumentária e no movimento dos corpos. Além disso, o nome dado ao novo bloco, Ilê Aiyê, em uma leitura livre do idioma iorubá, significa mundo negro. Segundo Lázaro Roberto Ferreira dos Santos:

E naquela época de 1974 a 1979, com a fundação do movimento negro, a gente tava presente participando. Era só descer aqui a ladeira que eu ia ver o ensaio de Ilê. E tudo isso sem ser fotógrafo nem nada, mas tudo isso já vinha trazendo questionamento negro: “O que é isso?” na minha cabeça, de perceber que a gente é negro. 2

Mestre de capoeira em aula para crianças na Comunidade Novos Alagados, Salvador (BA), 1993. Acervo Zumví Arquivo Afro Fotográfico. Foto: Lázaro Roberto

Em 1978, temos um segundo marco da cronologia do mundo negro brasileiro. Surgiria na capital do estado de São Paulo o Movimento Negro Unificado (MNU), fruto da convergência de dezenas de organizações políticas negras de alguns estados brasileiros. Toda essa força foi fundamental principalmente para a ruptura do pensamento da democracia racial no país, a criação do Dia Nacional da Consciência Negra, o surgimento da leis n. 10.639, de 9 de janeiro de 2003 (que torna obrigatório o ensino de história africana, afro-brasileira e indígena) e n. 12.711, de 29 de agosto de 2012, conhecida como lei de cotas, a presença de parlamentares negros na Constituinte, a criminalização do racismo, a titulação das terras quilombolas e o direito ao voto pelos analfabetos – a maioria deles, negra.

Esses marcos históricos políticos e culturais têm gerado uma produção imensa de documentos – cartazes, panfletos, jornais, revistas e, principalmente, fotografias. Entretanto, onde estão armazenadas todas essas memórias negras? O CULTNE, 3 no Rio de Janeiro, e o Zumví Arquivo Afro Fotográfico são entidades do mundo negro que se dispuseram a essa finalidade.

Lázaro Roberto: o lente negra da Bahia

Lázaro Roberto Ferreira dos Santos, conhecido como Lente Negra, é fotógrafo, arte-educador e militante do movimento negro brasileiro desde meados dos anos 1970. Nascido e criado no bairro da Fazenda Grande do Retiro em Salvador, em 1958, há mais de quarenta anos vem registrando as pessoas dessa cidade. Na adolescência, Santos esteve engajado em movimentos sociais de oposição à ditadura militar em seu bairro. Chamado Grupo Experimental de Arte da Fazenda Grande (Geafraga), o carro-chefe desse grupo era o teatro, com ênfase na crítica social, estando ligado à Igreja católica, em companhia de padres progressistas. O grupo realizava o Festival de Arte da Fazenda Grande, para o qual vinham pessoas da Escola de Belas Artes da Universidade Federal da Bahia (UFBA). Foi em um desses festivais que ele se encantou pela fotografia, em uma exposição sobre o cangaço, em preto e branco, do fotógrafo Antônio Olavo. 4

A partir desse momento, Santos se arrisca pelo universo da fotografia em parceria com o amigo Geremias Mendes, 5 que já possuía uma câmera fotográfica profissional. Dois jovens de periferia queriam fazer a arte cara que estava fora dos seus padrões de vida. Juntos, começaram a comprar livros, revistas, trocar conhecimento com outros fotógrafos.

Em 1989, Santos conseguiu comprar uma máquina mais profissional, a Pentax Asahi Spotmatic, que é responsável por 90% de seu acervo analógico com filmes 35 milímetros. Nesse ano, fez cursos profissionalizantes na área, que foram fundamentais para o domínio da técnica da fotografia, bem como o pontapé inicial para o trabalho de documentação.

Após dez anos registrando a população negra da cidade mais negra fora do continente africano, ele percebeu que os fotogramas, após serem retirados da máquina, com o tempo precisavam de um armazenamento específico porque, a qualquer descuido, poderiam ser contaminados por fungos ou se deteriorarem completamente.

O conselho que eu dou para quem está criando um arquivo fotográfico, por exemplo, eu venho da fotografia analógica, então é muito mais difícil, pelo menos eu penso assim, porque é um material físico que você tem que guardar para proteger, protegendo da umidade, principalmente. Você tem que botar pelo menos num local seco, arejado, e estar sempre olhando, no caso da fotografia analógica, porque esses cuidados que eu tive durante toda a minha vida de fotografia e tenho até hoje, embora sempre enfrentando problema com a temperatura, com o tempo, umidade, essa coisa toda. 6

Com o passar do tempo e com a busca pelo aperfeiçoamento, Santos criou um método de organização de seu acervo e dos acervos que chegam às suas mãos. A umidade sempre foi um vilão para os fotogramas, principalmente os coloridos, que logo perdem sua emulsão quando submetidos à variação de temperatura, por sua vez, os fotogramas em preto e branco são mais resistentes a essa variação. Assim, Santos nunca se resumiu ao registro fotográfico; com a visão futurista e consciente do papel político de seu trabalho, se aquilombou com outros fotógrafos para lutarem juntos pelo direito de salvaguarda de seu acervo e dos acervos de outros fotógrafos.

O Zumví Arquivo Fotográfico: um quilombo visual brasileiro

O Zumví Arquivo Fotográfico foi idealizado em 1990, por Santos, Aldemar Marques e Raimundo Monteiro, três jovens negros das periferias de Salvador, em um contexto histórico adverso, logo após o fim da ditadura militar e no momento da redemocratização no país. Mas quais foram os percalços encontrados por esses três jovens negros que almejavam produzir uma arte que era típica de pessoas de outras classes sociais e raça?

Santos e Monteiro usavam o cabelo estilo rastafári e eram parceiros políticos da luta antirracista, encontrando na arte da fotografia uma maneira de expressar suas respostas ao sistema. Antes de se reunirem, ambos já realizavam o trabalho de registro de forma amadora havia alguns anos e tinham acumulado fotografias de diversos aspectos do cotidiano afrodescendente da Bahia. Monteiro era fotógrafo lambe-lambe no centro da cidade de Salvador, Santos e Marques se conheceram no curso profissionalizante de fotografia do Senac, em 1990. O objetivo dos idealizadores era fazer fotografia documental ou fotojornalismo. Segundo Santos:

Mas eu me lembro muito bem que a gente queria fazer documentação e memória. Fazer fotografia hoje para o futuro, era assim que a gente dizia. A gente não tinha grana, só tinha câmera fotográfica, mas foi um período muito fértil, como eu trabalhava com os padres progressistas, tinha muita relação com povo de movimento social. Fizemos um pequeno folder e distribuímos nas comunidades, nas reuniões mensais dos movimentos sociais, o Zumví teve uma certa visibilidade, aí foi o momento que o Zumví mais atuou foi nos anos 1990. 7

Tudo girava em torno dos campos da documentação e da memória. “Fotografar hoje para o futuro”, era assim que eles pensavam. Com esse propósito, acabaram criando um Quilombo Visual, arquivo de memórias imagéticas dos grupos sociais negros, em grande medida sintonizado ao esforço documental de outros coletivos e grupos no Atlântico Negro.

O trabalho com os movimentos sociais de áreas distintas contribuiu para agregar diversos parceiros ao trabalho realizado por eles. Além dos três fundadores, podemos observar a presença de mais duas pessoas no folder. Do lado direito, no quadro onde está escrito coordenação em letra maiúscula, em negrito, estão os nomes de Maria Araújo e Geremias Mendes. Foi muito importante saber da presença de uma mulher na construção desse arquivo. Maria Araújo chegou por intermédio de Marques; ela era estudante de sociologia na Universidade Federal da Bahia e trouxe contribuições no campo das ciências sociais e escrevendo textos e projetos.

Fôlder elaborado para distribuição em comunidades e reuniões mensais dos movimentos sociais. Na imagem, os coordenadores Aldemar Marques, Lázaro Roberto, Maria Araújo e Raimundo Monteiro. Acervo Zumví Arquivo Afro Fotográfico

 

A concepção do nome Zumví é algo interessante de conhecer:

Quando eu criei o Zumví naquela época, a fotografia automática estava muita em evidência,
então, nada mais é do que o poder da lente Zum! É a capacidade que a lente Zum de buscar a realidade que está longe para perto, então ficou assim, Zum da lente Zum, eu não quis colocar em inglês, coloquei em português de besouro, que também pode ser um eco que se reproduz, o que a gente estava querendo é a visibilidade da cultura negra. Então ficou uma palavra criada Zumví. “Zum” da lente e “vi” do olho. Eu também queria uma palavra fotográfica. 8

O pesquisador Jorge do Espírito Santo na primeira sede do Zumví Arquivo Afro Fotográfico, no Bairro da Ribeira, Salvador (BA). Acervo Zumví Arquivo Afro Fotográfico. Foto: Lázaro Roberto, 1990


Ao longo de sua existência o Zumví esteve localizado em diversas sedes. A equipe começou o trabalho de maneira improvisada, fazendo reuniões, laboratório de fotografias e estúdio fotográfico, os móveis: mesas, cadeiras e armários expostos na imagem da primeira sede foram doados e comprados pelos fotógrafos. A localização distante do centro de Salvador dificultava a visibilidade e o acesso ao estúdio. Em 1995, foi solicitado outro espaço na igreja de São Miguel, no bairro do Pelourinho, centro de Salvador.

Vista de obras do Zumví Arquivo Afro Fotográfico na 35ª Bienal de São Paulo − coreografias do impossível © Levi Fanan / Fundação Bienal de São Paulo


Naquele momento a entidade não conseguiu se autofinanciar nem criar meios de sobrevivência para todos os fotógrafos continuarem produzindo. Como um quilombo, eram criadas várias estratégias de resistência, principalmente por meio do escambo para continuar produzindo. Segundo Santos, ele ainda levou o projeto para a sede do Movimento Negro Unificado (MNU), no Curuzu, bairro da Liberdade, por volta dos anos 2000, onde não permaneceu por muito tempo, pois existia uma grande insegurança. Por duas vezes a sede foi arrombada na madrugada. Assim, ele não pensou duas vezes e levou todo o material para sua residência, no bairro da Fazenda Grande do Retiro.

Atualmente, Santos vem tocando o acervo com uma nova equipe,9 e em 2021 o acervo passou a se chamar Zumví Arquivo Afro Fotográfico.10 Depois de uma campanha de financiamento coletivo e do apoio do artista plástico Totonho, que cedeu o espaço, a instituição permaneceu por dois anos na ladeira do Carmo na forma de uma galeria, comercializando cópias de suas fotografias.

Ao longo do tempo, vem recebendo outras doações, como a do poeta e militante Jônatas Conceição da Silva, que, em 2006, chamou Santos em sua residência e doou todo seu acervo de imagens, vindo a falecer em 2009. Esse material é composto de 1.618 fotogramas em preto e branco e coloridos. Desde 2016, o fotógrafo Rogério Conceição Espírito Santo vem contribuindo com doações de seu material fotográfico. Recentemente, a advogada Meire Cazumbá da região do Quilombo Rio das Rãs, de Bom Jesus da Lapa (BA), doou parte do seu acervo pessoal feito nessa comunidade nos anos 1980.

A partir de 2014, começamos a digitalizar o acervo por meio de editais de digitalização de acervos privados. A partir de então, foram digitalizados cerca de dez mil fotogramas.

Por meio da garra e da persistência de Santos, o Zumví acabou criando uma nova estética fotográfica e uma maneira própria de organizar seu acervo, o que pôde ser contemplado na 35ª Bienal − coreografias do impossível. Para ele, qualquer pessoa com boa vontade pode tomar a iniciativa de cuidar de seus acervos fotográficos pessoal e familiar. Não são necessárias muitas técnicas elaboradas, apenas manter em lugares distantes da umidade e da água. E sempre vigiar os fungos. Desse modo, mais famílias negras terão mais memórias imagéticas preservadas.

 

    • Conforme entrevista concedida por Lázaro Roberto Ferreira dos Santos ao autor, em Salvador (BA), em 20 de agosto de 2015.
    • Ibid. 
    • Instituição que detém o maior acervo audiovisual de cultura negra da América Latina. Em 2023, foi reconhecida como Patrimônio Cultural Material do Município do Rio de Janeiro (rj).
    • Antônio Olavo fez parte do grupo FotoBahia, que inicialmente foi uma exposição com vários fotógrafos de contextos diversos e, posteriormente, se transformou em um movimento de luta por direitos trabalhistas para a profissão de fotógrafo.
    • Geremias Mendes é ator, foi diretor da Federação de Teatro Amador da Bahia e é fundador do grupo de teatro Olodum.
    • Entrevista concedida por Lázaro Roberto Ferreira dos Santos ao autor, op. cit.
    • Ibid.
    • Ibid.
    • A partir do ano de 2013, venho contribuindo com Santos na manutenção do acervo, na pesquisa e no trabalho executivo da instituição. Também contamos com uma produtora executiva e dois estagiários que atuam conosco.
    • Sugestão da equipe que administra as redes sociais da instituição.

About the author

José Carlos Ferreira Dos Santos Filho é mestre em história profissional da África, da diáspora e dos povos indígenas da Universidade Federal do Recôncavo da Bahia (UFRB). Atua como diretor de relações institucionais do Zumví Arquivo Afro Fotográfico.