É muito fácil falar de cultura de paz em um carro blindado. Queremos ver é estar aqui na favela, enfrentando as diversas violências, promovendo a paz e oferecendo oportunidades para que o jovem possa trocar o fuzil por uma máquina fotográfica.
Nosso fazer artístico passa por sobreviver, morar, refletir, criar, pesquisar, se alimentar, enfim, um caldeirão em ebulição em que é preciso entender as opressões para combatê-las e saber pensar o espaço para se organizar nele.
Em um mundo desencantado, guiado pelo individualismo, desagregado, a cultura e a arte dão sentido à vida. Quando falta sentido, falta esperança e sobra ódio.
Por que nunca experimentamos oferecer às crianças e aos jovens esporte, acesso à cultura, acesso à comida, educação de qualidade, inserção com qualidade no mercado de trabalho, apoio financeiro para quem quer abrir seus negócios, livros com aquele cheiro de novo, acesso à saúde, oportunidade de nascer com respeito e morrer com dignidade?
Garanto que uma criança feliz e um jovem determinado a transformar sua vida e seu território são capazes de mudar seu destino, sem ter que parar numa cadeia ou num cemitério.
Por isso, defendemos que, quanto mais longe a favela, mais equipamentos culturais e mais acesso ela deveria ter. É assim que vamos tirar a nossa comunidade das páginas policiais para que ela passe a ocupar as páginas culturais.
Passados nove anos desde a última Bienal de São Paulo de que a Agência Solano Trindade participou, em 2014, ainda vivemos em uma periferia na qual a cultura, a arte e o lazer são promovidos pelos próprios moradores, trabalhadores, agitadores e empreendedores que fazem parte dos coletivos e das ocupações culturais. O Capão Redondo tem cem anos de história, mas ainda não abriga uma biblioteca pública. Do Campo Limpo até Parelheiros, existem menos praças públicas do que a maioria dos bairros nobres da cidade.
o espaço e o tempo_
O agrupamento dos nossos artistas, coletivos e movimentos expõe uma rica diversidade de pensamentos, conflitos, potenciais e contradições. Existe uma arte pulsante, e ela vai além da hegemonia imposta. Precisamos manter viva essa energia criadora periférica.
A efervescência cultural nas periferias é algo que saltou aos olhos nas duas últimas décadas. Mas essa parada sempre existiu nas aldeias, nos quilombos, nas favelas, nas quebradas: gente junta faz cultura todo dia. Entre becos e vielas convivem o louvor gospel, o forró, o funk, a pisadinha, o arrocha, o sertanejo de Inezita Barroso e o de Luan Santana. O rap dos Racionais bate forte, o samba é uma reza, assim como os saraus de literatura marginal, as batalhas e os slams das juventudes, os cânticos dos terreiros e a força dos maracatus.
A criação, a poesia, a imaginação radical em desenho, em reza, em sarau, em muros é o que permite a gente fazer nossas travessias. São essas as informações que temos o direito de produzir e consumir.
Portanto, a disputa pelo orçamento da cidade voltado para a produção cultural periférica é fundamental para liberar corpos e mentes para as subjetividades. O corpo que habita a periferia não é um corpo apenas de subserviência à cidade, é um corpo de direitos e desejos.

Sarah Halabi, Mãos que alimentam, 2023. Ilustração e pintura digital utilizando Adobe Photoshop 2020. 24 x 20 cm
a tia nice: nossa marca no mundo_ A periferia representa um novo modelo de organização social afrodiaspórica indígena que forma uma rede de afetos e possibilidades de construção de mundos sem as quais não estaríamos hoje aqui escrevendo a vocês. Enquanto o país enfrentou tempos sombrios de negação, negligência e genocídio, nas favelas sobravam inteligência, intermediação de conflitos, solidariedade, capacidade de mobilização e de acreditar na vida, sempre. A gente que vive na quebrada toca o impossível toda hora. A gente coreografa uma dança sem chão, a gente toca o tambor, a gente se aquilomba para tentar superar nossa própria extinção todo dia.
E a gente faz isso porque mulheres-mães-comunitárias são uma força tremenda, as tias Nices das favelas são aquelas que abrem caminhos e trazem das sabedorias ancestrais a resposta para o futuro do nosso povo. Todas as coisas boas que temos hoje nas comunidades decorrem de lutas históricas travadas pelas mulheres. Se hoje temos uma periferia forte, potente, expressiva e capaz de despertar sentimentos de pertencimento e de orgulho de morar na favela, isso se deve aos valores cultivados pelas mulheres da periferia. Então, começamos nossa jornada de parceria com a Fundação Bienal reverenciando as tias Nices de todo o Brasil.