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Uma paisagem habitada pelas infâncias do corpo

Prelúdio

Dona Maria de Jesus e sua filha Djanira Maria da Silva, s/d.
Foto: Acervo/cortesia do autor

 

I ato: o tempo bailarina

Para uma criança curiosa.

Você sabe onde sua avó guarda a criança que ela será?

Minha avó dizia que colecionava infâncias. No meu aniversário de 7 anos, me contou que cada ruga do seu corpo guardava uma sementinha.

Certa vez, ao me ver chorando, passou a mão pelo meu rosto e disse que somente aquelas lágrimas que caem quando rimos muito é que fazem as sementinhas de infância darem frutos. Ainda soluçando, perguntei para que colecionava infâncias. Ela me olhou, me deu a mão, me abraçou forte e disse que era por causa do tempo bailarina.

Tempo bailarina?, perguntei assustado. Não sabia que o tempo dançava.

Sim! O tempo dança. Gira pra lá e pra cá em todas as direções.

Quando estiver triste, e alegre também, nunca se esqueça de convidar o tempo para dançar, ela disse sorrindo.

 

ato II: dança-se a palavra, canta-se o gesto

Os almoços de domingo no quintal da vó Conceição eram sempre uma festa. Não havia um que não se deliciasse com o cansanção com carne defumada da tia Zora. Naquele tempo de minha infância, não podia compreender como ela conseguia transformar aquela planta que fazia todo o corpo coçar em um prato tão delicioso. Mas ela sempre me dizia que era o tempo.

Paciência, menino, o tempo tudo transforma!, me segredava olhando nos olhos.

Adorava quando íamos ao quintal para colher as folhas. Sempre saia de lá me coçando todo, mas tia Zora não. Me ensinava que as folhas exigiam respeito. Seus gestos eram todos coreografados como num ritual.

Devagarinho caminhava, em silêncio observava as folhas, se aproximava de uma a uma, dobrava-as e as arrancava.

Eram inúmeras horas ali na cozinha. Enquanto esperávamos o tempo da transformação do cansanção, ela contava histórias e revelava medos. Ficamos tão cúmplices que sabia o que ela queria me dizer pelo modo como cortava os tomates ou preparava o angu.

 


Material de apoio: Sesc Santana, Comida de cerca, 19 out. 2021. Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=DJ11MeuFOIs>. Acesso em: jan. 2023.

 

ato III: antes

Era uma vez um passarinho pequenininho
O tal do passarinho pequenininho se chamava Tempo
O Tempo vivia voando só
Sozinho brincava de mergulhar no rio e no mar
Um dia, sem mais nem menos, capturaram o Tempo
Mas como estava acostumado a voar e voar, não conseguia sair do lugar
O Tempo gastava o tempo indo de um lado para o outro

Ia e voltava
Ia e voltava
Ia e voltava

E assim passavam-se os dias e as luas
O Tempo indo e voltando
Indo e voltando
Indo e voltando

Até que numa noite muito escura o Tempo conseguiu escapar e voar e voar

E sempre que tentam capturá-lo
Ele escapa e voa
Como a pedra que Exu atirou amanhã
Desenha agoras pelo céu
O Tempo tem o peito cheio de ventania
E por isso ele voa, se curva, se dilata
Como um vendaval espiralar
Acaricia a superfície do céu
E devagar toca as bordas do rio e as profundezas do mar

 


Material de apoio: IHAC – Instituto de Humanidades, Artes e Ciências. Tempo em performance – conversa com a profa. Leda Maria Martins (UFMG), 17 dez. 2020. Disponível em: <www.youtube.com/watch?v=ShvhGTCYzw8&t=5178s>. Acesso em: jan. 2023.

 

ato IV: errância enraizada

A que caminha carregando a sombrinha: Preste atenção por onde anda. A que caminha olhando para os lados: Já estou cansada. A que caminha carregando a sombrinha: Estamos chegando. A que caminha olhando para os lados: Mas o sol já está indo embora. Você disse que chegaríamos antes da lua. A que caminha carregando a sombrinha: Você está prestando atenção no caminho? Qualquer dia precisará voltar sozinha. A que caminha olhando para os lados: E se eu não quiser voltar sozinha? A que caminha carregando a sombrinha: Só preste atenção no caminho. Algum dia entenderá melhor. A que caminha olhando para os lados: Estou com sede. A que caminha carregando a sombrinha: Fica calada que a sede passa. A que caminha olhando para os lados: Toda vez que a gente vem você fala a mesma coisa, eu fico calada e minha sede não passa. A que caminha carregando a sombrinha: Estamos quase chegando. A que caminha olhando para os lados: Hoje eu quero entrar. Não vou ficar te esperando lá fora. A que caminha carregando a sombrinha: Meu amor, já conversamos sobre isso. Você ainda não pode entrar. Precisa esperar. A que caminha olhando para os lados: Você promete que não vai demorar? A que caminha carregando a sombrinha: E se eu demorar você promete que não vai chorar? A que caminha olhando para os lados: Tá bem. A que caminha carregando a sombrinha: Então preste atenção no caminho. A que caminha olhando para os lados: Amanhã a gente vem de novo? A que caminha carregando a sombrinha: Só se não chover. A que caminha olhando para os lados: E se chover? A que caminha carregando a sombrinha: Mas não vai chover. A que caminha olhando para os lados: Eu quero que chova. A que caminha carregando a sombrinha: Eu também. A que caminha olhando para os lados: Se a gente quer, então vai chover. A que caminha carregando a sombrinha: Gosto quando você sorri e fecha os olhos. A que caminha olhando para os lados: Minha perna está doendo. A que caminha carregando a sombrinha: Meu amor, só mais um pouquinho. Olha lá! A que caminha olhando para os lados: O quê? A que caminha carregando a sombrinha: Não está vendo? A que caminha olhando para os lados: O quê? A que caminha carregando a sombrinha: A lua aparecendo no céu. A que caminha olhando para os lados: Chegamos? A que caminha carregando a sombrinha: Lembre-se sempre, o mais importante é não se esquecer de onde viemos.  

 

ato V: água

Vô,

Ontem sonhei que estávamos sentados à beira de um grande rio.

No meu sonho eu era seu avô e as coisas que te dizia eram ensinamentos que havia aprendido com você.

Te amo!

About the author

Anderson Feliciano nasceu em Belo Horizonte (MG) e dedica-se à escrita, à performance e à curadoria. Mestrando em dramaturgia pela Universidad Nacional de las Artes (UNA, Buenos Aires), participou de projetos em vários países da América Latina e da Europa, bem como nos Estados Unidos. É autor de Tropeço (Javali, 2020) e O iníci O, com Mário Rosa (2022).