35ª Bienal de São Paulo
6 set a 10 dez 2023
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Trabalhar em rede, tecer pertencimento conversa com Carmen Silva

Olá, eu sou Carmen Silva, 1 líder do Movimento Sem Teto do Centro – mstc. Eu sou uma mulher preta. Tenho a minha origem no Recôncavo Baiano. Sou filha de militar e de uma empregada doméstica. Eu vim para São Paulo na década de 1990 por um motivo que acho que todas as mulheres da minha idade têm vontade de fazer e, às vezes, não têm coragem: fugir para não morrer na mão do feminicida. Como filha de militar, fui criada dentro de um sistema patriarcal e machista. Então, na minha adolescência, achava que ter a liberdade era sair daquele convívio opressor. Eu ansiava pela liberdade de sair, de curtir. Achei que me casando resolveria o meu problema. Não façam isso, quem for ler isso, pelo amor de Deus, não façam. E então, na minha época — isso também não é uma época tão remota, isso acho que, até hoje, nas famílias nordestinas acontece —, a mulher, ela não poderia ser separada. Por mais que apanhasse, tinha que apanhar e ficar tranquila, porque mulher separada não condiz com as famílias nordestinas. E, aí, eu tomei a coragem, vim para São Paulo por um apelo, o apelo da sedução de vir para uma grande metrópole, onde a gente pensa que vai resolver todos os nossos problemas, que é moradia, trabalho e tudo isso que não passa por políticas públicas.

Chegando aqui em São Paulo, me senti uma refugiada no meu próprio país. Xenofobia pelo meu sotaque, talvez pela minha cor. Vi que São Paulo era uma cidade hostil. Vim para casa de amigos, vi que estava incomodando, fui parar nas ruas; das ruas, fui para o albergue. Chegando no albergue, fui para o movimento de moradia. Chegando no movimento de moradia, passo a quebrar paradigmas. E o primeiro paradigma quebrado foi comigo mesma. Percebi que, estando aqui, estando em qualquer outro local, eu teria o mesmo sentimento de refúgio como eu tive aqui em São Paulo. Primeiro, que tudo passa pela falta efetiva de políticas públicas no âmbito de habitação.

O que é direito fundamental muitas vezes passa distante e não é tão percebido pelas pessoas de baixa renda. No movimento de moradia, notei também que quem estava do meu lado tinha os mesmos problemas que eu, até maiores que os meus. E a minha quebra de paradigma é que eu começo a entender que tinha que trabalhar em rede, dentro de um conceito de coletividade. Passo a entender que pertencer a um território é muito importante. O pertencimento é aquele em que você, de fato, tem um convívio com o lugar. Mas o convívio não é só o convívio de ir e vir, é o convívio de participação, também, na vida, em um entendimento social, espacial e econômico.

Passo a ter esse entendimento, participando de conferências e de audiências públicas. Passo a entender a percepção urbanística, também, da cidade. E, participando disso tudo, eu começo também a contestar. Como mulher, contesto e mobilizo. Passo a contestar uma cidade vazia, um vazio urbano. Eu estava na região central, tinha essa percepção desses vazios, e as pessoas morando distantes, porque ainda naquela época era recente um programa habitacional da Luiza Erundina, 2 baseado em mutirões.

As pessoas gastavam mais tempo dentro de um transporte público do que propriamente dentro de sua casa. E, além disso, passo também a compreender o racismo ambiental. Pelo endereço, você tem as oportunidades de trabalho, de estudo, de muitas coisas — acessibilidade de fato. Nessa minha contestação, começo a questionar que não quero morar tão longe e que não acho justo o trabalhador morar longe de seu local de trabalho. Na época, eu até brincava: “Olha, Chitãozinho e Xororó têm dinheiro para comprar um helicóptero e levar a filha para estudar, eu não tenho. Então quero morar perto da escola”.

Começamos a ocupar a região central de São Paulo. Ocupar prédios ociosos, sem função social da propriedade e com duas motivações bem sérias. Primeiro, a necessidade das famílias. Segundo, para colocar na pauta a questão da moradia como um seio onde a família possa se estruturar para ter dedicação, trabalhar, estudar, ter dignidade, educar os filhos e, principalmente, se educarem. Porque as oportunidades começam quando você tem, de fato, o refúgio da sua moradia, e não em locais tão distantes. Tenho que morar onde eu tenha escola, transporte, parque, cinema, teatro, assistência em saúde. Esses são os anfitriões da moradia. Sem esses eixos, não adianta só morar. Aí, eu passo também a discutir a questão urbana, a geopolítica urbanística de São Paulo. 

No ano de 1995, começamos a fazer as primeiras ocupações na região central da cidade de São Paulo. Nessas ocupações, a gente compreendeu, sim, que era possível o trabalhador de menor renda morar na região central. E então, as oportunidades vêm, que é a questão do emprego, é a questão de você ter oportunidade de colocar um filho na escola, ter creche, ter acesso à saúde, que são bens. Que isso é primordial para a dignidade de qualquer ser vivo. E aí damos continuidade.

Em 1997, eu ocupo, junto com outras pessoas, o prédio que hoje é a Ocupação 9 de Julho. Em 2 de novembro de 1997, a gente ocupa um prédio. E é importante ressaltar que nós nunca ocupamos nenhum imóvel que tivesse função social. Todos os imóveis que ocupamos, ocupamos para fazer a denúncia da falta efetiva de moradia, e também por uma questão de dizer que um prédio vazio, abandonado, além de ser uma questão de segurança, é uma questão também de saúde pública. Porque, dentro desses imóveis vazios, tem muito lixo, muitos seres microscópicos que nós nunca imaginaríamos que estavam ali. Então, tem retorno da meningite, da tuberculose. Nós não podemos descartar que a questão dos anos 1980, com o surto de HIV, fez com que o bacilo de Koch fosse se multiplicando. Então, questões de saúde que estavam erradicadas voltam por isso, né? Fora a questão da segurança, um local vazio, ermo, não tem segurança para quem mora, para quem está do lado e tampouco para quem é transeunte naquele local. E nós ocupamos para colocar a pauta da moradia. A moradia é um direito fundamental, mas ela não pode deixar de ter outros direitos sociais. E quando a gente ocupa, a gente traz pessoas que vivem pagando aluguéis caríssimos.

Para vocês terem uma ideia, a região central de São Paulo é cheia de cortiços. O cômodo de um cortiço tem três metros quadrados. As pessoas hoje falam das novas construções feitas no Centro, de dezenove metros quadrados, vinte metros quadrados, mas tem famílias aglomeradas morando em três metros quadrados. Esses três metros quadrados estão no metro quadrado mais caro que a cidade de São Paulo tem. Um morador de um cortiço paga novecentos reais, 1.200 reais, e muitas vezes ele recebe um salário-mínimo. E isso deveria ser o mote para chamar a atenção para a questão real da moradia. Em bairros inteiros, como Santa Cecília, Bixiga, Baixada do Glicério, Campos Elíseos, 3 encontramos essa exploração nos cortiços, que são explorações muito altas. Então, a gente vai, com o tempo, também, colocando na pauta não só a extensão da moradia, mas também a qualidade de vida das pessoas. E, aí, a gente vê que é necessário, em um contexto de movimento, não só lutar pela moradia, mas também por todos os outros direitos, e assegurar, garantir direitos, e um deles é o da alimentação. 

A alimentação é imprescindível. As nossas crianças [da Ocupação 9 de Julho], elas não precisam ir para a escola para se alimentar, elas se alimentam com as três refeições diárias. É primordial. As nossas crianças, se vocês chamarem para se aglomerarem, elas jamais fazem fila. Se você notar, com as crianças que estão em situação de rua, quando alguém chama a primeira, é uma fila. As nossas, não. As nossas ficam dispersas, alegres, bagunçando demais… Isso é uma percepção, inclusive, que foi motivo de estudo. Nem eu tinha percebido isso, foi motivo de estudo do Hospital das Clínicas, uma ala do hospital, que trata de questões de saúde mental, fez um estudo com várias crianças de ocupações. E eles tiveram essa percepção, de que as crianças que estão em situação de rua, quando você chama, montam uma fila. As nossas, não. Elas estão em um ambiente tão saudável que qualquer roda de conversa, para elas, é normal. Mesmo que vocês chamem para dar um brinquedo, jamais vão fazer fila. E conforme essa percepção, também, a gente vai amadurecendo como liderança.

No ano de 2000, com outras mulheres, criamos o Movimento Sem Teto do Centro – MSTC. Nós fundamos o mstc com a premissa de que nós participássemos junto de uma rede, inclusive descentralizando o poder público, participando de todos os conselhos que o poder público tem, porque a participação popular dentro de um conselho, dentro do poder público, é importantíssima. As decisões, mesmo que a gente não possa deliberar, por seu caráter consultivo, se pode opinar. É muito importante, inclusive, que isso não fique só nos movimentos sociais, que isso também se estenda para toda a sociedade civil.

É muito importante que participem do Conselho de Habitação, Conselho de Idoso, Conselho de Transporte, Conselho Tutelar, e outros espaços institucionais. Agora mesmo, nós estamos na revisão do uso e do parcelamento de solo, que é como nós vamos dirimir a cidade. O que vai ser feito do solo da cidade? É muito importante que as pessoas participem. E isso a gente vai aprendendo com o tempo, dentro dessa participação, né? Porque, como liderança, o meu papel é fazer o papel do advocacy. 4 Tenho que negociar, tenho que fazer o diálogo com toda a sociedade civil, com o poder público e privado, porque senão eu não tenho devolutiva das pessoas. E a nossa maior ansiedade é conseguir se adequar aos programas habitacionais. São programas que nós temos que estar aptos a entrar, programas regulatórios, inclusive, que temos que estar aptos a entrar em editais, a preparar essas famílias, porque quando elas chegam até nós, chegam com uma incompreensão até da falta de documento. E nós temos uma desinformação, e os movimentos procuram trabalhar com essa informação. Não é só colocar a pessoa para morar, é também uma educação cidadã.

Registro da conversa. Foto: © Levi Fanan/Fundação Bienal de São Paulo

 

    • Relato concedido por Carmen Silva à equipe de educação da Bienal, em 25 de novembro de 2023, na Cozinha Ocupação 9 de Julho − mstc, na 35ª Bienal. 
    • Luiza Erundina é uma política brasileira. Entre outros cargos, foi prefeita de São Paulo entre os anos de 1989 a 1992, e, em 2022, foi eleita deputada federal pelo PSOL. 
    • Bairros localizados na região central do município de São Paulo (SP).
    • O termo em inglês advocacy refere-se ao ato de apoiar, promover ou defender uma causa ou questão, normalmente com o objetivo de provocar uma mudança positiva. Quem realiza a advocacy trabalha para influenciar a opinião pública, as políticas e as decisões em favor da causa que escolheram. No caso de Carmen Silva, a advocacy que ela realiza se refere à luta por moradia.

Sobre a autoria

Carmen Silva é urbanista social. Fundadora e liderança do Movimento Sem Teto do Centro (MSTC) e da Cozinha Ocupação 9 de Julho, atua também como chefe da assessoria de Participação Social e Diversidade no Ministério de Desenvolvimento, Indústria e Comércio do Governo Federal.