35ª Bienal de São Paulo
6 set a 10 dez 2023
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São Paulo
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Vista da obra Falatório, de Stella do Patrocínio na 35ª Bienal de São Paulo – coreografias do impossível © Levi Fanan / Fundação Bienal de São Paulo

Stella do Patrocínio

Como pouco se sabe sobre a história de Stella do Patrocínio (1941-1992), as palavras que movimentamos para falar dela, sempre fugitivas, precisam fabular a partir das coreografias do impossível. É assim também que o falatório, sua prática corpo-vocálica da palavra, requer que nos conectemos com ele – cerrando os olhos para ouvir o colapso das fronteiras. 

A cada minuto que se passa em 1 hora, 39 minutos e 15 segundos dessas gravações, Patrocínio opera uma nova dobra no tempo, fazendo curvar aquelas linhas horizontalizadas – das que foram desenhadas pelo manicômio às da literatura –, que lhe roubaram o corpo, que quiseram lhe roubar a palavra. Essa debandada, até pouco tempo atrás ecoada por taras degenerativas, eugenias, o fetiche da loucura, a poesia!, se vê estraçalhada por um falatório que refunda a própria arena de guerrilha. E afirma: apesar de Eco, estes são os meus termos. 

Eco, a ninfa forçada a repetir
as palavras de outros. Ou ainda
Eco – o consenso branco.1
Exu, movimento, força vital
– faz circular o tempo e
a mensagem. 

No conclave entre Eco e Exu, o placar não está zerado, tampouco a dívida; mas o tempo espirala: atravessada por forças de asfixia – a polícia, a literatura, o serviço doméstico, o eletrochoque –, Stella do Patrocínio abre seu falatório exuriano à criação de rotas de fuga e ao revide, à fabulação estética no espaço da clausura. E é nessa opacidade que baila o falatório – nem somente poesia, nem testemunho, tampouco quaisquer outras classificações que, sozinhas, não se bastam: 

Se eu rasgar aquela pesada
no meio de meio a meio, der
der der lambada no chão, na
parede, jogar fora, no meio do
mato, ou do outro lado de lá do
muro, é um malezinho prazeres
[…] Matar a família [do cientista]
toda. Que faça um carro, bote
tudo morto e vá pra longe.2

Stella afirma ser do tempo do cativeiro, porque compreende a maquinaria-fantasiosa que há por detrás dos encarceramentos de corpos pretos desde os tempos de sua bisavó. Diz em voz alta: Clarice, Celeste, Meritempe, Luzadia, Adelaide – nomes sobre os quais talvez nunca saibamos muito além do carinho com o qual ela os profere. 

Numa linguagem que vadia em pretuguês3 ritmado, sincopando a repetição das diferenças, Stella desaloja noções prévias do que seja o tempo, espaço, casa, família, ciência, o corpo e seu estudo – e segue para o mais longe possível. Sua vocálica contém vértebras, e constrói mundos de linguagem para lançar um falatório-exu que rasga o tempo e que mata, hoje, os ecos de ontem. 

sara ramos

Stella do Patrocínio (Rio de Janeiro, Brasil, 1941 – 1992), poeta, ganhou reconhecimento somente após sua morte, depois de mais de trinta anos de confinamento na Colônia Juliano Moreira, no Rio de Janeiro. Sua fama póstuma veio com a publicação do livro Reino dos bichos e dos animais é o meu nome, organizado pela poeta e filósofa Viviane Mosé. O livro foi editado com gravações das falas de Patrocínio captadas pela artista plástica Carla Guagliardi no final da década de 1980, além de transcrições de outras conversas feitas pela psicóloga Mônica Ribeiro de Souza.

1. Referência a Grada Kilomba, Ilusões vol. I – Narciso e Eco. In Grada Kilomba: Desobediências poéticas. Catálogo de exposição. São Paulo: Pinacoteca de São Paulo, 2019.
2. cd2_01. Terceira parte dos depoimentos/entrevistas/falas. 6’53’’. In: Sara Martins Ramos, Stella do Patrocínio: entre a letra e a negra garganta de carne. 2022. Dissertação de Mestrado. Disponível em: dspace.unila.edu.br/handle/123456789/6465. Acesso em: 2 jun. 2023.
3. Referência a Lélia González, “Racismo e sexismo na cultura brasileira”. Revista Ciências Sociais Hoje, Anpocs, pp. 223-44, 1984.