35ª Bienal de São Paulo
6 set a 10 dez 2023
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35ª Bienal de
São Paulo
6 set a 10 dez
2023
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Vista da obra Rasura, de Raquel Lima na 35ª Bienal de São Paulo – coreografias do impossível © Levi Fanan / Fundação Bienal de São Paulo

Raquel Lima

Em Rasura (2021), Raquel Lima revisita e reinventa uma história permeada por traumas − traumas íntimos, sociais, coletivos. Entre abandonos, ruínas, camadas de escritas e hábitos, sua poesia- -performance transpõe os muitos séculos precedentes por meio de reminiscências que subsistem e voltam à superfície como em um ciclo eterno. Não é possível interromper o tempo que corre, mas Lima encontra maneiras de atravessá-lo, moldá-lo com sua voz e decifrá-lo com o corpo em movimento. 

Usa a palavra “rasura” para além de sua semântica, tendo nela a chave de decodificação e de tradução. E se essa palavra não for o ponto de partida de seu pensamento, é, com certeza, seu ponto de chegada. Em contraponto a “apagamento”, a anulação total de uma ideia, de uma identidade ou de uma história, “rasura” pressupõe o erro ou a intenção de apagar algo parcialmente ou um refazer sem disfarces. Na obra, “rasura” significa também resistência. 

Do interior de pequenos barcos abandonados, Lima nos põe a olhar pela janela o oceano ao redor e, nele, vemos outros barcos abandonados à deriva. Mais do que vida, houve ali exploração e algo sucumbiu – mas não foi apagado. Na ilha de São Tomé, no golfo da Guiné, em São Tomé e Príncipe, as casas coloniais outrora abandonadas guardam rachaduras, vazios assombrosos, paredes com tintas descascadas, ruínas sobre ruínas que, ainda assim, são habitadas em seu precário permanecer. Quem ocupa esse cenário são corpos negros, parte da história primordial do lugar para o qual seus ancestrais foram levados como mercadoria − o humano tornado coisa, rasurado, mas não apagado. 

O trauma dos séculos de escravidão cujas consequências seguem tendo reflexos no destino das populações negras é elaborado com cuidado nas palavras com as quais a artista se expressa performática-poética-visualmente. As palavras estão inscritas na “oratura” – uma dimensão ontológica que propõe outras formas de narrar o cotidiano e a história; uma cosmovisão – que coreografa sentidos em tempos distintos. 

Nenhum passado pode ser apagado, mas seus vestígios podem ser transmutados pela arte. Ao menos pela arte emancipatória, um caminho transpassado pela interseccionalidade consciente, que é percurso, movimento e que dá novas possibilidades aos tempos históricos. 

pérola mathias

Raquel Lima (Lisboa, Portugal, 1983) é poeta, arte-educadora e artista transdisciplinar. É doutoranda em Estudos Pós-Coloniais no Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra, com a sua pesquisa focada em oratura, escravatura e movimentos afro-diaspóricos. Co-organizou a conferência Afroeuropeans: Black In/Visibilities Contested (2019), organizou diversas edições da oficina Poesia, Raça e Gênero: para uma escrita poética interseccional, e elabora o conceito da intraseccionalidade. Apresentou o seu trabalho artístico e académico em eventos pela África, América do Sul e Europa, destacando a exposição mais recente o meu útero não está na europa. Publicou o livro Ingenuidade Inocência Ignorância (2019), e co-fundou a UNA – União Negra das Artes (2021). O seu trabalho está na encruzilhada entre arte, ativismo e academia. 

Esta participação é apoiada por República Portuguesa – Cultura / Direção-Geral das Artes.