35ª Bienal de São Paulo
6 set a 10 dez 2023
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São Paulo
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Vista de obra de Eustáquio Neves durante a 35ª Bienal de São Paulo – coreografias do impossível © Levi Fanan / Fundação Bienal de São Paulo

Eustáquio Neves

A tenacidade de Eustáquio Neves em observar e pesquisar os ritos e as festividades das comunidades negras remanescentes torna-o um notável restaurador de memórias. As séries Arturos (1993-1994) e os dípticos Encomendador de almas (2006-2007), apresentadas na 35a Bienal, registram uma visão abrangente do sagrado, da educação hereditária e do cotidiano dessas comunidades. 

Graças a seu conhecimento dos processos químicos, adquirido com sua formação técnica, Neves interfere manualmente nos negativos das fotografias, gerando efeitos diversos. É um gesto enigmático, quase lomográfico, que penetra a operação do equipamento e expõe o caráter indeterminável e coreográfico do olhar que as compõem. 

No início da década de 1990, Neves realizou a série Arturos, retratando um grupo familiar que rememora seu antepassado mais antigo, Artur, no município de Contagem, Minas Gerais. Esse grupo é caracterizado por suas práticas sagradas, baseadas no entrecruzamento do catolicismo com as religiões de matriz africana, durante a celebração da Festa de Nossa Senhora do Rosário, protetora das irmandades negras no Brasil colonial. Na primeira foto, há um grupo de adultos e crianças no centro, todos elegantemente trajados. A segunda foto retrata um homem da guarda, em uma postura ereta e central, e na terceira, “O rei”, enquadrado em busto, veste uma coroa e um manto. 

A segunda obra apresentada é da série Encomendador de almas e retrata a comunidade quilombola do Ausente ou do Córrego do Ausente, localizada próxima ao município de Milho Verde, na região do Vale do Jequitinhonha. O encomendador de almas é uma figura presente nas festividades da Nossa Senhora do Rosário e é responsável pelos cantos de trabalho chamados vissungos. Nos dípticos apresentados na Bienal, um deles mostra o sr. Crispim, uma pessoa muito importante na hierarquia do catopê (nome dado às Congadas na região de Minas Gerais), sentado, vestindo uma blusa clara e um manto que cobre os ombros, as mãos unidas sobre as pernas. Ao lado, há uma foto de uma espada usada para abrir caminho para o cortejo de Nossa Senhora do Rosário. No segundo díptico, o sr. Antonio aparece junto à sua casa. 

As imagens de Neves desafiam os limites técnicos da fotografia e performaram “uma realidade que não pode ser nomeada”, como mencionou a voz autora da publicação educativa da 35ª Bienal.1 Os povos remanescentes são uma extensão do quilombismo e, ao reconstituir tempos e personagens em uma memória aparentemente estática, Neves indica um resgate de tradições e de paisagens, como a própria incongruência da construção da memória. 

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Eustáquio Neves (Juatuba, MG, Brasil, 1955. Vive em Diamantina, MG, Brasil) desenvolve uma linguagem experimental marcada pela manipulação química de negativos e cópias e misturando muitas vezes fragmentos de diferentes negativos. Sua obra aborda a identidade e memória afro-brasileira – tema de ensaios como Arturos (1994), em que retratou uma comunidade negra remanescente de quilombos em Contagem (MG), Futebol (1998) e Objetivação do corpo (1999). Em Retrato falado (2019), projeto vencedor da Bolsa de Fotografia ZUM/IMS 2019, reconstruiu o retrato do avô, que não conheceu e de quem não tem imagens nos álbuns da família, a partir de descrições de parentes e de recursos analógicos e digitais de manipulação fotográfica. É químico de formação. Recebeu o Prêmio Marc Ferrez de Fotografia da Funarte em 1994 e expôs em mostras como o 5º Rencontres de la Photographie Africaine (Bamako, Mali), e na 2ª Bienal do Tokyo Metropolitan Museum of Photography  (Japão). Suas obras integram as coleções Pirelli/Masp, MAM-SP, Itaú Cultural, Museu Afro Brasil (São Paulo, Brasil), entre outras.

1. Referência à frase “uma realidade que não posso nomear”, in “Correspondências entre vozes, uma carta para abrir conversas”, in Aqui, numa coreografia de retornos, dançar é inscrever no tempo: publicação educativa da 35a Bienal de São Paulo – coreografias do impossível. São Paulo: Fundação Bienal de São Paulo, 2023, p. 15