35ª Bienal de São Paulo
6 set a 10 dez 2023
Entrada gratuita
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35ª Bienal de
São Paulo
6 set a 10 dez
2023
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Rosana Paulino
Paraíso tropical, 2017
Impressão digital sobre papel, linoleogravura,
ponta seca e colagem
48 × 33 cm
Cortesia da artista e Mendes Wood DM, São Paulo

Nós não temos um drama, temos uma luta para tocar: conversa entre Rosana Paulino e Sueli Carneiro

O texto a seguir foi elaborado a partir de recortes da conversa que a equipe de Educação e o coletivo curatorial da 35ª Bienal acompanharam entre Rosana Paulino e Sueli Carneiro, ao lado das ervas de axé e debaixo da romãzeira citadas pela artista. Ali, nos alimentamos das reflexões partilhadas, e também da deliciosa moqueca de Pai Alcides

rosana paulino Estar aqui, num território diferente, estar aqui neste terreiro. Quando eu falo que não vou só fazer um texto, não vou só falar na Bienal, tem que vir para cá, ter o barulho do trem passando, ter esse jardim de vó que está cheio de plantas de axé. Essas são outras formas de se aproximar do mundo, são outras formas de conhecimento.

Trazer as pessoas para cá, em vez de só escrever um texto. É importante estarmos aqui. E você, Sueli, fala no seu livro1 das outras formas de conhecimento, de outras epistemologias, de apagamentos epistemológicos.

sueli carneiro É, eu falo muito dos saberes sepultados, da negação da nossa condição de sujeito cognoscente, da negação da nossa condição de sujeito cognitivo. Há uma dúvida metafísica sobre nossa educabilidade, que foi colocada pelos pensadores. Grandes filósofos colocaram dúvidas a esse respeito, inclusive se nós tínhamos alma, não é? Mas, ao mesmo tempo, eu tenho uma inquietação: de quanto precisamos da legitimação desses pensadores? Isso é uma dúvida, coloco como um problema. Ah, está bem. Tem que ocupar o espaço, tem que estar presente aqui, tem que buscar reconhecimento lá e, sobretudo, nas instâncias que nos negam esse reconhecimento. Agora, será que é só disso que precisamos? Será que esse é o único horizonte utópico possível para alcançarmos a legitimação no universo das instituições brancas? Se essas instituições foram tão perversas, se foram tão deletérias, será que somos capazes de transformá-las a ponto de que, dentro delas, possamos realmente restituir tudo o que nos foi tirado? O que nos foi tirado de dignidade humana, excelência humana? Gosto muito da ideia de que, para além disso, é preciso encontrar as nossas próprias formas de legitimação. Eu acho que os povos que foram oprimidos na dimensão que nós fomos têm a obrigação de se pensarem como novos agentes civilizatórios. Isso significa ir muito além dessa civilização sob a qual estamos todos submetidos. Muito além do que ela nos ofereceu como possibilidade para o humano, e não apenas o que foi feito conosco. Mesmo a classe hegemônica tem muitas razões para estar insatisfeita se fizer uma reflexão séria sobre o que resultou desse processo civilizatório. Que mundo é esse? Sobretudo o mundo que nós herdamos, que o colonialismo produziu, que é o mundo no qual estamos, hoje. Nós, povos que fomos destituídos – pretos, indígenas e outros grupos –, mas que somos portadores de outras visões de mundo, de outros valores e outros princípios, talvez tenhamos como responsabilidade ainda maior produzir aquilo que o [geógrafo] Milton Santos [1926-2001] chamava de universalidade empírica,2 forjada pelo intercurso de todas as possibilidades culturais que a humanidade produziu.

rosana Mas como a gente faz isso? Como a gente coloca essas novas visões?

sueli Primeiro precisa sonhar, não é? Como eu sou bem mais velha que você, eu sempre digo, eu sou daquela geração que disse: “Sejamos realistas, queiramos o impossível!” Então, primeiro precisa sonhar.

rosana Isso é maravilhoso, primeiro precisa sonhar, e então tem as estratégias também, não é? Como é que a gente faz? Entra por dentro e tenta esse posto de poder, tenta modificar dali, come pelas beiradas…?

sueli São várias as estratégias. A nossa gente teve táticas de todo tipo para chegar até aqui, depois da mais brutal experiência que um grupo humano sofreu, que foi o que nós passamos. Nenhum outro grupo humano passou por algo tão brutal como o que aconteceu com o tráfico transatlântico, com a escravização de tantos milhões de africanos e de seus descendentes. Nós pulamos uma fogueira que ninguém pulou. E, para chegar aqui e ainda existir, tivemos que desenvolver diferentes táticas, múltiplas táticas, da confrontação direta a uma série de outras possibilidades de suposta aceitação, de tergiversação. Foram múltiplas táticas, os historiadores são prenhes em nos fornecer essas diferentes modalidades de resistência que nós desenvolvemos. E eu acho que, agora, quando temos essa massa crítica que você menciona… quando você chegou, anos atrás, não havia, mas hoje temos artistas como essas pessoas, esses negros todos que estão nesses novos circuitos em que não estávamos, e temos que cobrar deles. “Tá bom, está bonito, legal, mas e então?” Por isso eu quero que a senhora fale desse espaço, do Instituto Rosana Paulino. Quando eu falo em “espaços de legitimação”, é disso que eu estou falando.

rosana A ideia é daqui a dois anos estar com o espaço, que é o Instituto Rosana Paulino, e a biblioteca vai ser o coração desse lugar. Isso é porque nós temos que pensar novas imagens, o Brasil tem que ter acesso ao que é produzido pela diáspora, porque hoje nós não temos, as coisas não entram aqui. 

Uma coisa que eu não tinha falado pra você ainda é sobre o café com os professores, trazer professores de escolas públicas, uma vez por mês, pra tomar um café no Instituto, e que esse seja de fato um local de trabalho de arte. Esse é um dos sonhos, e colocar essa biblioteca aberta para jovens pesquisadores, professores, jovens que são servidos pela linha do trem. É um local muito legal porque é estratégico, a todo momento a gente escuta o trem passando, tem esse eixo das estações Francisco Morato, Perus, mas também é fácil para o pessoal da zona leste, que desce na estação Barra Funda. A ideia é ter um instituto construído neste local. Esta casa que está aqui, a gente vai botar abaixo, mas manter o jardim, e a parte de trás fica também.

sueli Que é medicina!

rosana Exatamente, isso é medicina, é curativo em todos os sentidos. É curativo para a alma, é curativo porque me conecta com a minha ancestralidade pelo jardim. E aqui atrás, manter as árvores, porque o meio ambiente é necessário, e eu acho que os povos de matriz africana, indígenas, ribeirinhos, quilombolas têm um conhecimento e a chave para a gente sair desse caminho da extinção.

“A natureza é a medida de todas as coisas.” — Rosana Paulino

rosana Tem uma história engraçada que eu vou contar para vocês. Eu fui para o Bellagio Center, da Fundação Rockefeller, na Itália.  Do meu quarto eu via as montanhas; de um lado, os Alpes italianos e, do outro, os Alpes suíços. Só que meu quarto ficava um pouco afastado, um local onde havia três palácios, era um projeto muito interessante, porque era gente de todo o mundo, de áreas diferentes, pensando ao mesmo tempo. Fiquei um mês lá, tinha matemáticos, antropólogos, artistas visuais, cineastas, pensando como a educação pode colaborar com a arte. Eu estava em um prédio que não era o prédio central e eu tinha que atravessar um jardim, uns dez minutos andando. Era um jardim italiano, e eu tinha que passar por ele todo santo dia. Aquilo foi me dando um desespero tão grande, que nem eu sabia o que estava acontecendo; eu tinha que passar pelo jardim e começava a me sentir mal, a me sentir fisicamente mal, a ficar desesperada. Até que um dia eu acordei e pensei: “Eu estou sentindo falta de mato, eu estou sentindo falta da Mata Atlântica, eu estou sentindo falta de um espaço de natureza que não seja tão organizado e que não tenha essa arrogância”.  Porque, por mais bonito que fosse o local − e era lindo −, era um jardim renascentista, era aquela ideia de domar a natureza. E nisso eu me percebi. Acho que foi uma experiência muito forte, eu percebi como realmente ser uma pessoa negra vai muito além; essa relação com as plantas, essa relação em que você não se coloca acima da natureza é que estava me pegando. Então isso modificou todo o meu trabalho. Lá no Bellagio eu fiz uma série, Paraíso tropical (2017) [p. 25]. Então, voltei para o Brasil e fiz aquele álbum que eu mostrei,3 e assim começou a mudar a direção do meu trabalho. Percebi que essa afrodescendência ia muito além de questões políticas, da cor da pele, mas era a maneira como eu me colocava dentro da natureza também. Então entrou em choque – uma coisa que eu estava comentando outro dia no ateliê – essa ideia europeia de que o homem é a medida de todas as coisas. A natureza é a medida de todas as coisas para quem vem do grupo do qual eu venho. Você não vai tirar do alecrim ou da espada-de–são-jorge uma folha sem pedir autorização. Isso me pegou muito. 

Então, quando eu vou pensar o ateliê e  instituto, por menor que seja, isso [a natureza, as árvores] vai ficar aqui. Lógico que vamos trocar algumas plantas, atrás vamos mexer porque tem terreno, mas, se eu não tiver também esse espacinho, não tem sentido para mim. Eu mudo, deixo de ser quem sou, muda a minha relação com o mundo, não é?

sueli Muito lindo, obrigada por compartilhar isso conosco. Muito legal!

rosana Eu que agradeço a escuta, para mim foi muito potente, mudou o meu trabalho; então passam a aparecer nele os elementos da natureza, com muita força. Eu olhava aquilo e pensava: “Eu quero mato, eu quero Mata Atlântica!” Começa nesse ponto o olhar atento de ser tão parte da natureza, de estar tão embrenhada ali, que é outra maneira de pensar o mundo. Primeiro, vou trabalhar essa dimensão da ciência e da planta, essa arrogância da ciência que classifica, que nos classifica, que classifica nossa interação com a natureza como algo primitivo. Vou discutir se a ciência é a luz da verdade. E com perguntas, sempre: “A ciência é a luz da verdade?” Porque a ciência nos classifica como primitivos. A nossa relação com a natureza é diferente, mas de maneira nenhuma é primitiva. E é isso que pode salvar, inclusive, o mundo; cada vez mais fui me dando conta disso, de que essa arrogância, esse outro modo de lidar com a natureza, colocou a gente na beira do abismo. E, agora, quem vai nos tirar dali? Isso vai proporcionando outras dimensões também, quando olho o feminino negro e vou pensando como esse dito universal, que a psicologia coloca, não nos cabe. Não cabe em mulheres que têm um arquétipo como o meu, que sou filha de Ogum com Iansã, não tem como. Nenhum arquétipo da psicologia tradicional que conhecemos vai dar conta de uma mulher filha de Ogum com Iansã, sol em áries e lua em leão! 

Então vou procurar outras maneiras de me colocar do ponto de vista da psicologia. Assim, nascem, primeiro, as mulheres árvores, como a Senhora das plantas [2019]; do fato de eu ser obviamente filha de Ogum com Iansã nascem as Búfalas [2019]. As Búfalas são muito adolescentes, muito desafiadoras, eu diria que a Senhora das plantas é a mulher lá dos seus 50 anos… E aqui no parque onde eu caminho, o Parque do Jaraguá, tem um jatobá com quase 500 anos. Ele tinha uma plaquinha muito antiga que dizia: “Este Jatobá tem cerca de 450 anos”. Mas essa placa devia ser da década de 1990. E as Jatobás me lembraram as grandes Iabás, as grandes senhoras, donas do conhecimento, que mantiveram as comunidades negras unidas. 

As primeiras mulheres árvores que nasceram foram as Jatobás [2019]. Depois delas, eu gosto muito da ideia do mangue, onde tem aquelas raízes aéreas que vão se interconectando, então eu pensei em continuar essa pesquisa das mulheres árvores, que são as mais antigas, que são as grandes senhoras, com esse elemento de interligação, porque essas raízes do mangue vão todas se entrecruzando, vão se interligando. E o mangue é um local muito importante porque é berçário, é um local de vida e de morte; tudo começa ali, tudo termina ali. O mangue tem uma dimensão cósmica muito bonita. Então eu pensei: quero levar essa experiência das mulheres árvores para o mangue. Já faz um tempo que estou viajando para o mangue, faz mais de dois anos que eu estou perseguindo o mangue, e essa dimensão de vida e de morte, para mim, é a sabedoria que existe nesse espaço tão especial representado por essas raízes que vão se interligando. É como se essas mulheres, mães, as grandes Iabás, fossem essas raízes que vão interligando as vivências negras.

“Eu consigo montar uma aula grande a partir de uma folha.” — Rosana Paulino

Rosana Paulino Da série Jatobá, 2019 Aquarela, grafite sobre tela 65 × 50 cm Cortesia da artista e Mendes Wood DM, São Paulo Foto: Isabella Matheus

rosana Quando falo que a escola está produzindo natimortos, é porque estamos à beira de um desastre climático. E quando falo que temos que nos sentar novamente debaixo da árvore, isso não é uma coisa romântica, é uma maneira de nos apropriarmos do mundo, inclusive usando a tecnologia que temos. Por exemplo, atrás de você há umas folhas de tapete-de-oxalá. É preciso descondicionar esse olhar que só se direciona para a lousa, que só vai ali para a frente, que só vai para aquela pessoa que dá as informações. Eu consigo montar uma aula grande a partir de uma folha e pergunto: “Que folha é essa?” Pego esses aplicativos de reconhecimento de planta, vou lá, fotografo. “Que planta é essa, para que ela serve, ela tem alguma utilidade além do jardim?” “Se ela é tão conhecida, se ela é boa para o estômago também… se ela tem um princípio químico, que princípio é esse? Por que ela entra na digestão, como é que ela entra na digestão? Tradicionalmente, para que essa planta é usada? Quem utiliza essa planta, que povos fazem isso?” “Se usar para banho de Oxalá, é tapete-de-oxalá o nome dela; se usar para orixá, como é essa representação? Como é essa história?” Tudo isso apenas a partir de uma folha! É descondicionar esse olhar que só recebe. Descondicionar esse olhar e voltar a deixar as crianças fazerem as perguntas; é uma das principais virtudes do ser humano, fazer perguntas. E, na escola, colocam um sentadinho atrás do outro, e ai de quem sair dali e perguntar uma coisa que não está lá! A gente tem que trazer de volta essa capacidade de olhar, essa capacidade de fazer perguntas. Nada melhor que sentar debaixo da árvore e ficar ali.

sueli Eu não tenho muito o que acrescentar em relação ao que a Rosana já colocou, mas acho que tem um contexto e uma realidade que estão além do que estamos discutindo. Vivemos num país que forma pessoas que têm nível de graduação, de pós-graduação, que têm canudo, mas são analfabetas políticas, são reacionárias, são conservadoras, são totalmente descompromissadas em relação a este país. Os maiores índices de escolaridade são das pessoas que apoiaram os últimos quatro anos [2019-2022] que nós vivemos, que é chamada a elite educada, a elite letrada do país, que sustentou um governo genocida, um governo excludente, um governo negacionista, um governo anticiência. Temos que pensar nisso. A escola está produzindo esse tipo de coisa. Sempre haverá um professor heroico, uma professora heroica, sempre existiram e sempre existirão os heroicos na educação, mas, no grande contexto, a ambiência escolar tem sido essa. Hoje a educação está controlada por forças ideológicas e políticas que são contrárias à emancipação das mulheres, que demonizam nossas culturas, nossas manifestações culturais. É dessa escola que estamos falando também.  Seja ela escola pública, seja ela escola de elite, o Brasil está péssimo naquele indicador que avalia o desempenho dos alunos das classes superiores,4 ou seja, é ruim para todos isso. Então, é dessa educação que estamos falando, uma educação que não cria para a cidadania, muito ao contrário, é nesse contexto que a gente luta. Assim, a pergunta última é: “De qual educação este país precisa?” Que seja crítica, que permita que sujeitos críticos se desenvolvam, que possibilite que cidadãos sejam formados, e que tenham respeito pelos valores básicos da democracia, do Estado Democrático de Direito. Pois o que assistimos é exatamente o contrário disso. Há menos de uma semana, aquilo que estava circunscrito à experiência do norte, nos Estados Unidos, parece que vai começar a proliferar por aqui também, essa coisa da violência da escola.5 O supremacismo é uma ideologia que prospera na sociedade brasileira; num país de maioria negra existe um supremacismo que se espraia aqui; está tudo junto com a educação. Então, acho que tem um pano de fundo nesse contexto que precisa da nossa atenção, e talvez precisemos de recursos outros para podermos fazer o enfrentamento, a disputa de corações e mentes para valores progressistas, republicanos. A pandemia foi a pá de cal sobre essa situação e assim se projeta uma década de esforço sério e responsável para poder dar conta do prejuízo que foram esses últimos anos. Eu venho da escola pública, acho que nós pertencemos às últimas gerações de escola pública de qualidade, que permitiu que pessoas como nós nos tornássemos quem somos. Mas essa escola não existe mais, com tudo que ela nos ofereceu de possibilidade para desenvolver uma visão crítica da sociedade, ter bons professores, poder acessar uma literatura de muito valor e que você pudesse também problematizar, exercitar sua inquietação diante do mundo, perguntando, questionando, problematizando. Pelo que tenho ouvido, essa escola não existe, ela não está aí. Então a escola que está aí não está formando Rosanas Paulino a todo momento, não está, não. Por mais importante que seja a educação, é sim, mas desde que não seja essa que está formando essas pessoas que são os letrados da sociedade que fazem escolhas anticidadãs, escolhas reacionárias, escolhas conservadoras, que penalizam a maior parte da população deste país. 

Na primeira viagem que eu fiz aos Estados Unidos, percorri o circuito black. Escolhi visitar um conjunto de organizações e assim fiz, na costa leste, na costa oeste. Tudo o que eu pude conhecer de organizações e instituições negras, eu visitei. E voltei de lá com uma convicção: de que um dos principais desafios que nós temos − estou falando de movimento social − é construir organizações que sejam sólidas, perenes. Não havia naquela época − isso há cerca de trinta anos − uma organização negra que tivesse conseguido sobreviver na sociedade por mais de cinquenta anos no Brasil. Então, acho que esse é um desafio que temos: construir organizações sólidas para nossa gente, que tenham como missão institucional alavancar o processo de desenvolvimento da nossa gente. O desenvolvimento político, o desenvolvimento educacional, ideológico, em todas as dimensões. Precisamos ter essas organizações como referência, organizações que também afirmem nossa identidade, que nos afirmem culturalmente, que demarquem a diferença que nós queremos fazer e a diferença de projeto que temos para oferecer a este país. E acho que isso só se faz com organização, não se constrói isso sozinho, mas com instituições. Por isso, além de criar a minha, eu participo da criação de inúmeras outras, então, tenho uma absoluta crença nessa ideia. 

rosana Somos duas! Já vai ajudar a criar aqui também.

sueli Pode contar comigo, sou boa nisso!

“Há muitas formas de educar.” — Sueli Carneiro

sueli E não é só a escola que educa hoje. Eu tenho essa oportunidade também, de construir – inclusive currículos que nos interessem − utilizando ferramentas de que dispomos. Tem uma experiência que estou acompanhando de fora, embora eu esteja diretamente implicada nela. É uma experiência que a Casa Sueli Carneiro está realizando. O nome dessa instituição é Sueli Carneiro, mas não sou da direção, não sou do Conselho, tem meu nome e eu doei meu acervo pessoal para a casa. Ela realiza periodicamente cursos de formação.  Esse último curso6 que está sendo oferecido tem quatro professores: Edson Cardoso, de Salvador; Muniz Sodré, eu e a Conceição Evaristo. É um curso on-line. A previsão era oferecer a 2 mil pessoas. Tivemos 15 mil inscritos. Mas o que isso significa? É uma demanda reprimida que temos, pessoas que querem esse tipo de conhecimento e que não vão encontrar na escola, às vezes sequer na universidade. Tem 11 mil dessas pessoas que estão fixas, que estão acompanhando sistematicamente o curso. Há alguma coisa nisso.  Eu tenho sonhado com a possibilidade de ministrar cursos de filosofia em praça pública, voltar para a tradição filosófica mais arcaica, que era na res publica, o debate filosófico, levar para a ágora. Como diz uma professora [Yara Frateschi] no posfácio do meu livro Dispositivo de racialidade, a filosofia ocidental nasce − para Sócrates e Platão − do espanto.7 Ela [Yara Frateschi] afirma que a minha filosofia nasce da minha perplexidade diante do absurdo que é nossa vivência como negros, esses corpos submetidos a tanta violência. Essa perplexidade somada à indignação nos leva a pensar de um modo completamente diferente, fora da caixinha. Uma atitude de insurgência, porque é a condição para afirmar nossa dignidade humana e contrariar tudo o que o racismo diz sobre nós. 

Há muitas formas de educar. Tem uma escola, ela está lotada de problemas; nós temos que lutar para que ela se torne a escola de que precisamos, mas não temos de ficar esperando essa escola possível acontecer para tomarmos providências. Há uma série de ações que podem ser desenvolvidas. As ONGs fazem isso o tempo todo; a lacuna, a ausência de bibliografia negra na universidade, o movimento social proveu essa lacuna. Eu li Abdias [Nascimento], eu li Lélia Gonzalez, eu li Amílcar Cabral, tudo em troca-troca de livro de militante. Eu sempre conto esta história: há quinze anos, chegou na minha organização, a Geledés, uma professora, chefe de departamento de pós-graduação em uma universidade do Canadá. Ela chegou ao Geledés e disse: “Vocês são a minha última chance”. Eu perguntei: “Sim?” Ela continuou: “[Vocês são] A última chance de eu encontrar um livro de Abdias Nascimento, porque eu revirei as universidades brasileiras e não encontrei em lugar nenhum os livros desse autor. E isso é algo absolutamente incompreensível para mim, porque, para nós, ele é considerado a maior expressão do pan-africanismo nas Américas!” Portanto, nós temos um país que consegue operar isto: o epistemicídio!8 E o epistemicídio é isto: apagar do universo da universidade uma figura com a importância e a dimensão de Abdias Nascimento.

“Para que serve o racismo?” — Sueli Carneiro

sueli Mas o dispositivo9 não é meramente negativo, ele é também produtivo. Pois produz, inclusive, resistência. Então, essa é uma dinâmica que envolve todas as estratégias de assujeitamento, mas que também envolve as dinâmicas de resistência. Porque você nunca deixa o dispositivo, rigorosamente nunca sai dele; a resistência é quase uma política de redução de danos e de criação de janelas de oportunidade no contexto dessa mecânica, dessa engenharia, dessa coisa que se move se retroalimentando e às vezes engasgando e permitindo um salto de qualidade. Eu disse um milhão de vezes que a saída do mito da democracia racial produziria o agravamento do conflito racial porque o mito da democracia racial tinha uma etiqueta. A primeira estratégia politicamente correta que existe no Brasil é o mito da democracia racial, porque ele conformou uma cena para este país, que é inclusive vendida internacionalmente, e que tinha um princípio: enquanto todos funcionarem de acordo, vai dar certo. Acontece que nós desafinamos no meio desse caminho e nossa resistência começou a nos levar a problematizar, a questionar, dizer que não, aquilo não era democracia racial, era mito. Não era democracia racial, era farsa, era falácia. Esse discurso foi nos empurrando para a necessidade de reconhecer as desigualdades raciais e os remédios para corrigir isso. E isso culmina em quê? Estamos falando de remédios: a questão das cotas é um ponto de inflexão nesse debate, um ponto de inflexão na medida em que o combinado não vale mais. E a branquitude veio para cima de nós, com tudo. Alguém se lembra do que foi o debate sobre as cotas? Quanto nós apanhamos? Não foi fácil, foi um verdadeiro pelourinho eletrônico10 aquilo o que aconteceu. É dessa tensão que a mudança surge, e ela virá mais rápido e mais consistente quando nós, como sujeitos políticos coletivos, tensionarmos e pressionarmos. É o que sempre digo, está tudo muito bem, está tudo muito bom, mas o movimento de direitos civis, as conquistas, a derrubada da segregação racial foram na rua, como movimento coletivo. Nelson Mandela permaneceu quase trinta anos na prisão. Foi necessário criar um instrumento político para dar conta daquela luta que levou décadas. Não será o protagonismo individual que construirá a transformação. A política é uma ação que se faz no coletivo e acho que essa tensão, a capacidade de vitória que temos, depende disso, do nível de organização política e da capacidade de pressão e de incidência política. Foi assim em todo lugar, está tudo muito bom, temos gente na universidade, produzindo, mas a luta política é travada de outro modo, precisa de instrumento político e de ação coletiva. Considero que esse é o desafio que temos como coletividade.

Para que serve o racismo? Não quero mais conversar aqui “Ah, porque nós não somos inferiores… porque o branco disse… etc.” Esse é um sistema que foi criado para permitir uma construção de grupo racialmente privilegiado à custa da opressão de outro. É para isso que ele serve, é para isso que foi feito. Qualquer outra conversa é bobagem, e minha tentativa é colocar esse debate onde ele nunca está, no âmbito das relações de poder neste país.

Penso, sobretudo, que temos a obrigação de lutar em defesa de nossa dignidade humana, não importa se houver horizontes ou não. Nossa obrigação é lutar; nossa dignidade humana se afirma recusando o que esse dispositivo11 nos oferece ou nos impõe. Se seremos vitoriosos ou não, não importa, nosso único caminho é a luta contra todas as formas de assujeitamento. Porque é essa rejeição a tudo o que o assujeitamento diz que garante que somos seres humanos. É a rejeição radical a isso. Nós não temos um drama, temos uma luta para tocar; não há um drama existencial, se quisermos viver, temos que lutar. Eu sempre digo para os meninos pretos: a maior insurgência que vocês podem realizar é se manter vivos, façam isso a qualquer preço. 

O que está sendo dito o tempo todo é: “Está bom, há uma emergência de um fenômeno, o colonialismo institui uma coisa”; e essa coisa fundamental é a supremacia branca. Mas isso se desdobra em muitas coisas. No plano jurídico institui sujeitos soberanos e subalternos. Qual é o papel da educação nisso? É nesse ponto que entra o epistemicídio, quando a educação é um instrumento de reprodução desse saber dominante, desse saber opressor, desse saber que nos exclui da dignidade humana, que nos exclui da humanidade. Ao discutirmos a lei n.10.63912 nos termos em que ela foi concebida, percebemos o esforço gigantesco que alguns professores, alguns diretores, alguns coordenadores pedagógicos faziam para implementá-la. Uma coisa é termos o direito de conhecer a história da África, da cultura afro-brasileira. Mas tão importante quanto isso seria fazer a leitura crítica do que foi a construção da civilização ocidental, do que foi o processo colonial do ponto de vista do conhecimento. Tudo o que foi forjado ali. Se a celebração da nossa negritude em sala de aula não caminhar paralelo a uma desautorização da antropologia kantiana,13 que afirma que nós somos naturalmente inferiores, não vai funcionar!

Chega, não é?

    • Sueli Carneiro, Dispositivo de racialidade. Rio de Janeiro: Zahar, 2023.
    • Universalidade empírica é um conceito desenvolvido por Milton Santos que parte de categorias de análise territoriais, valorizando assim a racionalidade produzida e observada nos próprios territórios. O objetivo é promover o avanço de técnicas contrárias às encontradas nos sistemas de valores totalizadores impostos pela cosmovisão europeia. Para saber mais, ver o livro de Milton Santos Por uma outra globalização: Do pensamento único à consciência universal. Rio de Janeiro: Record, 2001. [N.E.]
    • Referência à primeira visita da equipe de Educação da Bienal ao ateliê de Rosana Paulino, no dia 10 de março de 2023, quando a artista mostrou e comentou diversos trabalhos, entre eles o álbum ¿História natural? (2016).
    • ENADE (Exame Nacional de Desempenho de Estudantes). [N.E.]
    • Sueli refere-se ao episódio ocorrido na Escola Estadual Thomazia Montoro, Vila Sônia, São Paulo, SP, em 27 de março de 2023. [N.E.]
    • Curso on-line gratuito “Ler o Brasil”, promovido pela Casa Sueli Carneiro de novembro de 2022 a maio de 2023. [N.E.]
    • Dispositivo de racialidade, op. cit., 2023. [N.E.]
    • Epistemicídio é um conceito criado pelo sociólogo Boaventura de Sousa Santos para nomear o processo de apagamento e de morte das epistemologias, dos modos de compreender o mundo dos povos colonizados. Ou seja, é resultado das ideologias de dominação empregadas pelo imperialismo e pelo colonialismo a fim de manter o controle e a hegemonia sobre os povos colonizados. Para Sueli Carneiro: “O conceito desenvolvido por Boaventura de Sousa Santos torna possível apreender o processo de destruição da racionalidade, da cultura e da civilização do Outro, que aconteceu e acontece no Brasil”. Ibid, p.87.
    • De acordo com o pensamento de Foucault, filósofo francês com o qual Sueli Carneiro dialoga para a elaboração de suas teorias, dispositivo é um conjunto de elementos variados a partir dos quais pode-se compreender o funcionamento de organismos reguladores e produtores de vida, mas que nem sempre compõem um regime de visibilidade, nem sempre são revelados. Por exemplo, qual a concepção de Estado para a organização do homem em meio à sociedade? Quais os mecanismos que regulam o funcionamento do Estado? O dispositivo não possui um formato único ou normativo, depende do contexto, do conjunto de normas e enunciados ao qual é empregado. [N.E.]
    • Refere-se sobretudo ao debate anticotas após a aprovação do PL 73/1999, a lei de cotas, e do PL 3.198/2000, o Estatuto da Igualdade Racial. Parte da sociedade posicionou-se contra as leis que asseguravam vagas para estudantes negros acessarem o Ensino Superior, uma das políticas de reparação aos povos negros e escravizados no passado. Podemos compreender o posicionamento anticotas como um evento sintomático do racismo, presente nas mais diversas camadas sociais. Manifestos a favor e contra as cotas raciais, redigidos e divulgados em 2008, foram assinados por diversos representantes da sociedade civil. Em resposta ao manifesto contra as cotas raciais, os movimentos negros articularam-se mais uma vez em defesa delas, na época aplicadas na UNEB, na UnB, na UERJ e em fase de expansão nas demais universidades federais e estaduais. Os debates foram acalorados, principalmente devido à adesão de intelectuais ao manifesto anticotas, cenário ao qual Sueli se refere em sua fala. Ambos os manifestos podem ser lidos em “Confira a íntegra dos manifestos contra e a favor das cotas”, Folha de São Paulo, 4 de jul. 2006. [N.E.]
    • Nesse ponto da argumentação, Sueli Carneiro nos apresenta a elaboração de um dispositivo específico, o dispositivo racial. Esse conceito foi defendido em 2005 na sua tese de doutorado, A construção do outro como não-ser como fundamento do ser, em que relaciona a noção de dispositivo foucaultiana à questão racial, ao buscar compreender os mecanismos que legitimam o racismo. [N.E.] 
    • Lei que tornou obrigatório o ensino da história e da cultura africana e afro-brasileira. Fruto de uma intensa mobilização dos movimentos negros pela valorização da cultura e da história afro-brasileira no ambiente escolar, essa lei foi instituída no primeiro mandato do presidente Luiz Inácio Lula da Silva (2003-2007). Em 2008, a legislação foi alterada (atual 11.645/08) com o intuito de abarcar os conhecimentos dos povos indígenas. [N.E.]
    • A antropologia kantiana é um conjunto de teorias do filósofo alemão do século 18, Immanuel Kant. De acordo com os seus argumentos, a antropologia deve ser apreendida da observação empírica do objeto de análise. No seu livro, Antropologia de um ponto de vista pragmático, encontramos uma série de análises produzidas da observação das civilizações humanas, algumas consideradas em sua época como selvagens, também de acordo com as teorias iluministas que o influenciaram. Em Dispositivo de racialidade (op. cit., 2023, p. 91), Sueli Carneiro discute a antropologia kantiana. Após comentar as categorias racistas utilizadas pelo filósofo para descrever civilizações ameríndias, africanas e asiáticas, ela afirma: “A negação da plena humanidade do Outro, o seu enclausuramento em categorias que lhe são estranhas, a afirmação de sua incapacidade inata para o desenvolvimento e aperfeiçoamento humano, a destituição da sua capacidade de produzir cultura e civilização prestam-se a afirmar uma razão racializada, que hegemoniza e naturaliza a superioridade europeia. O Não Ser assim construído afirma o Ser. Ou seja, o Ser constrói o Não Ser, subtraindo-lhe aquele conjunto de características definidoras do Ser: autocontrole, cultura, desenvolvimento, progresso e civilização”. [N.E.]

Sobre a autoria

Rosana Paulino é artista visual, pesquisadora e educadora, com doutorado em artes visuais pela Universidade de São Paulo e especialização em gravura pelo London Print Studio. Sua obra dialoga com questões sociais, étnicas e de gênero, com foco especial nas mulheres negras da sociedade brasileira e nos vários tipos de violência sofridos por essa população devido ao racismo e ao legado duradouro da escravidão. Entre outras exposições, seu trabalho esteve na mostra principal da 59ª Bienal de Veneza (Itália) e na 21ª Bienal Videobrasil (São Paulo, SP).

Sueli Carneiro é filósofa, escritora e ativista do movimento feminista e do movimento negro no Brasil. Doutora em educação pela Universidade de São Paulo, é cofundadora, coordenadora executiva e coordenadora da área de direitos humanos do Geledés – Instituto da Mulher Negra. Publicou, entre outros livros, Racismo, sexismo e desigualdade no Brasil (Selo Negro, 2011), Escritos de uma vida (Letramento, 2018) e Dispositivo de racialidade: A construção do outro como não ser como fundamento do ser (Zahar, 2023).