35ª Bienal de São Paulo
6 set a 10 dez 2023
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São Paulo
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2023
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Registro da conversa. Foto: © Levi Fanan/Fundação Bienal de São Paulo

Experimentar o chão: Conversa sobre infâncias com Sandra Benites, Regina Aparecida Pereira e Cintia Aparecida Delgado

A publicação de “Nhe’ẽ para os Guarani (Nhandewa e Mbya)” no primeiro movimento 1 da publicação educativa da 35ª Bienal de São Paulo veio acompanhada do desejo de Sandra Benites, membro do conselho curatorial, de que ela não fosse a única voz falando sobre os muitos sentidos do nhe’ẽ. Ela gostaria de dialogar com outras pessoas Guarani e mesmo com outras comunidades não-indígenas. Desse desejo e de nossa interlocução com Sandra surgiram dois encontros sobre infância. O primeiro, realizado em parceria com o Museu das Culturas Indígenas, aconteceu no espaço do museu, no dia 24 de setembro de 2023, e reuniu as educadoras Patrícia Jaxuka (Tekoa Pyau, Jaraguá) e Luana Pommé (Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra – mst), com mediação de David Popygua, ativista indígena, professor, liderança tradicional e ator. No dia 7 de outubro de 2023, na programação pública da 35ª Bienal, uma segunda conversa sobre infância teve a participação de Sandra Benites, junto com Regina Aparecida Pereira e Cintia Aparecida Delgado, do Quilombo Cafundó, participante da exposição. O encontro propôs uma conversa sobre os sentidos do ser criança em comunidades indígenas e quilombolas, práticas pedagógicas tradicionais e o reconhecimento dessas comunidades como territórios educadores. O texto a seguir foi elaborado a partir de recortes da conversa, mediada pela equipe de educação e questões trazidas pelo público presente.

sandra benites É de alegria e de me sentir bem mesmo, de estar aqui falando sobre a infância, que é muito importante. Que é onde começa tudo.

Para nós Guarani, Karã ou mitã quer dizer ser, um ser pequeno. A gente não tem divisão de gênero, não tem ela e ele. Isso vai acontecendo durante a nossa existência. Ara Rete, o meu nome em guarani, recebi quando comecei a andar. A criança recebe o nome quando começa a andar. Por quê? Quando começa a caminhar, a gente entende que a criança está experimentando o chão onde ela pisa. Por isso, é muito importante o entorno dessa criança, fazer o bem para que a criança se encante pelo espaço, pelo lugar. De querer ficar continuando.

Porque os espíritos que a gente chama de Nhe’ẽ, é o ser, é o modo de ser, e também são os espíritos, a fala, aquilo que a gente carrega com a gente como ser. Por isso é muito importante assentar bem o espírito no nosso corpo para a gente viver bem. Isso leva a gente a ser alegre, ser feliz. É um trabalho conjunto, coletivo. Não depende só da mãe ou do pai. É responsabilidade de todos, da comunidade.

Para nós, mães principalmente, a infância não começa na existência da pessoa. Ela começa no pensar em ter uma pessoa. As mães querem engravidar, aí, a gente pensa como será essa criança. Pensa espaço, o modo de ser, como a gente vai receber. Então todo esse fazer-território do ser-pessoa, a gente pensa antes mesmo de ter esse ser.

“a sua autonomia de ser pessoa”

                                                − Sandra Benites

sandra Quem já não foi criança, né? Às vezes, tem uma lembrança na nossa cabeça. É uma coisa simples, é com os colegas, é brincando na rua, é se jogando na água. É isso que faz o sentido da vida. Por que não se trata disso também na escola? Queria só trazer essa provocação para a gente pensar a criança do futuro. Nós somos o futuro dos nossos anciões, e o futuro da gente também tem outros.

A escola é uma das coisas mais angustiantes que existem no nosso meio. Não estou dizendo que a escola é tudo de ruim. Estou falando que a escola, onde é imposta a forma de educar, é totalmente diferente da nossa forma de educar nossas crianças. Me parece que a escola está aí pra educar, quer dizer, controlar. Controlar o ser-pessoa. Moldar a pessoa.

A gente constrói a pessoa para ser gente, para ser pessoa, para ser autônoma, para ser a sua autonomia de ser pessoa, daquilo que é importante para a pessoa. Não é ao contrário. A escola tem um papel fundamental hoje, infelizmente, de controlar e fazer a pessoa como se fosse universal. Uma escola universal, quer dizer, fazer todo mundo igual. Nós não temos o papel de dizer: “essa aqui passou do Ensino Médio para a faculdade”. Isso é da vida mesmo, é seguir em frente da forma que é importante para a gente. Criar pessoa, construir pessoa, não é fácil, mas a gente respeita muito esse outro.

Eu fui professora, no Espírito Santo. Mandei meus alunos que passaram para o Ensino Médio, meninos e meninas adolescentes, na faixa etária em que elas estão no período ritual. O professor, que não sabe nada sobre o nosso costume, falou que os alunos guarani que foram para o Ensino Médio só ficavam lá atrás. Só ficavam com a cabeça baixa e não olhavam para a cara do professor. Perguntou o que eles tinham que fazer com os meus alunos que não estavam prestando atenção. Fiquei pensando muito sobre a questão da imposição. Porque, primeiro, esses adolescentes estavam no período ritual. O que é cabeça baixa para a gente, principalmente em meninos? Os meninos ficam assim o tempo todo porque a escuta não é olhando, a escuta é no ouvido, e também no corpo. Por isso que a gente fala rendu. Eu posso sentir dor no corpo quando tenho ferida, ou dor de dente, qualquer outra coisa no corpo, eu sinto dor, mas eu escuto, rendu também quer dizer escutar. Então a gente escuta a dor no corpo também. Por isso, para poder escutar com o corpo, você precisa se concentrar muito nas coisas. Eles são educados a estarem sempre de cabeça baixa e prestar atenção, lógico, na fala.

Aí a gente vai dizer: “isso não é racismo?” Dizer: “isso é do meu jeito, mas eu não respeito o jeito do outro”. Isso é um racismo que acontece em tudo quanto é lugar. Quando a gente é diferente e não pensa como a educação ocidental, é muito difícil a gente caber nesse lugar. E as crianças muitas vezes enfrentam esse lugar. Muitas vezes, não faz sentido para elas irem à escola, porque elas realmente não se encontram nesse lugar.

Não estou dizendo que a escola ocidental tem que acabar. Estou dizendo que tem que entender quem chega, qual território que está chegando do teu lado. Se é com cabeça baixa que se escuta, ou se é cantando que a gente aprende. Como que a gente aprende, é roda de conversa? Não só olhando em fileira e achando que essa é a única forma de aprender. A gente tira o ser criança muitas das vezes, e molda a criança de um jeito só, como excelente educação. Acho que nós, que estamos aqui hoje nesta mesa, somos um exemplo de resistência.

 

Será que vai ter um espaço para levar todo o mundo sem pisar no chão? Acho que nós estamos aqui para discutir território, o nosso modo de ser, o nosso próprio corpo. Isso requer o nosso chão para a gente pisar, para a gente continuar reproduzindo o nosso conhecimento. Esse é o nosso processo de ser pessoas quilombolas, indígenas, do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (mst) e várias outras comunidades tradicionais que têm esse conhecimento próprio. Isso requer para a gente também ter chão, ter água, ter árvore, ter planta, ter roça do nosso meio.

“primeiro, eu coçumbo,

pra depois eu cupopiar”

                             − Cintia Aparecida Delgado

 

cintia aparecida delgado Estou muito feliz de estar ao lado dessas duas potências, essas mulheres. Sou descendente do Quilombo do Caxambu. Um quilombo que foi extinto na década de 1970, e a família do meu avô foi a última a ser expulsa do quilombo. Ao ter a casa queimada, o vô e a vó tiveram que sair com sete crianças pequenas, com a roupa do corpo, e recomeçar a vida. Hoje eu trabalho no Quilombo Cafundó, já faz vinte e tantos anos. Sou mãe de três filhos, duas meninas e um menino.

A nossa cultura é passada, através da oralidade, até os dias atuais. Tudo o que sei, tudo o que falo, e que hoje é o meu trabalho falar dessas comunidades, aprendi com alguém mais velho. Aprendi com um griô, através da coçumba. Coçumba, no nosso dialeto, é ouvir, mas é além de ouvir. Coçumbar é ouvir e entender. Primeiro, eu coçumbo, pra depois eu cupopiar. Cupópia é a fala, é a conversa. Eu ouço, entendo, e depois coloco isso em prática, depois falo. E esse é um dos saberes mais ricos dos povos tradicionais, dos povos quilombolas. Para você aprender dessa forma, você tem que estar ali sempre. Na nossa comunidade, quem passa o dialeto não é o pai que passa para o filho, não é a mãe que passa para a filha. O pai vai passar para um sobrinho, e essa tia [mãe desse sobrinho] vai passar para outro sobrinho. É uma forma pensada de manter a família sempre conectada.

Apesar de parecer sonhador, acredito num futuro ancestral. Acredito que a gente vai ter que voltar lá para trás e equilibrar isso novamente. Lá, a gente chama criança de camanaco no dialeto. E, da mesma forma que a irmã falou, não tem gênero. O pequeno é camanaco. Teve muita miséria, teve muita fome, e hoje eu vejo que, apesar de tanta dificuldade, a gente também tem muita riqueza. Muita riqueza que, infelizmente, a cidade vai ter que voltar para lá, vai ter que olhar para esses povos de novo com mais carinho, e aqueles que ridicularizaram e demonizaram a nossa cultura já estão enfrentando os resultados da falta dela, na falta do brincar. A gente aprende brincando. A nossa forma de transmitir é cantando, é brincando, é em roda, tendo esse toque, tendo esse contato, pegando na mão.

“ele não entendia a escrita dos brancos,
mas entendia a fala dos pretos”

                               − Cintia Aparecida Delgado

Visita ao Quilombo Cafundó, em Salto de Pirapora durante a 35ª Bienal de São Paulo. 24/11/2023 Foto: © Iza Guedes / Fundação Bienal de São Paulo


cintia
A gente que tem filhos na escola fala de educação o tempo inteiro e passa por esse choque cultural. E, para ser bem sincera, pelo menos a minha filha do meio, mando para a escola porque sou obrigada. É muito sofrido para uma criança de comunidade participar de um grupo onde ela não pode nada, onde tudo que ela aprendeu de valores é contestado o tempo todo.

A prova desse impacto negativo é que, no Quilombo Cafundó, teve uma escola. Enquanto a escola era ali na comunidade, estava todo mundo brincando. Deu a hora de ir pra escola, atravessava a mata e estava lá, e ia com a roupa que estava. A primeira vez que todo mundo foi pro [Ensino] Fundamental II, que era na cidade, não era mais assim. Eu não podia ir descalça, ninguém tinha a roupa igual à minha. Aí, começam as comparações, e o resultado disso foi que, da minha faixa etária, só três pessoas concluíram o Ensino Médio. Três pessoas. Porque ninguém quer ser ridicularizado.

A gente tem um trabalho de turismo dentro da comunidade e, às vezes, as pessoas falam isso: “não pode ter vergonha”. Mas não é uma questão de vergonha. Como que eu vou exigir de uma criança de seis anos que ela fique palestrando na escola. Eles não querem, eles querem pertencer. Com o turismo, a gente está conseguindo, a passos bem curtos, retomar a  autoestima dessas crianças e mostrar para elas que essa forma de viver é uma forma saudável, é uma forma valiosa, que foi arrancada delas. Se todo o mundo dá risada do meu avô, não vou querer parecer com ele, não vou querer parecer com alguém de quem eles riem. Um dos nossos ancestrais, seu Otávio Caetano, faleceu com o sonho de aprender a escrever. Era um sonho. Ele falava que ele não coçumbava a mukanda do cafombe. Coçumbar é o entender, a mukanda é a escrita e o cafombe são os homens da cidade, os homens brancos. Ele não coçumbava a mukanda dos cafombe, mas ele coçumbava a cupópia do vimbundo, ele entendia a língua dos pretos. Ele morreu com esse sonho. E ele era muito ridicularizado na nossa cidade.

Hoje, estar num espaço tão grandioso como este, repleto de fotos do seu Otávio Caetano lá em cima, mostrando que ele não era um bobo, um tolo. Ele era um estrategista, um sonhador. E, graças a ele, a gente pode estar aqui hoje. Graças às estratégias do seu Otávio Caetano. Ele era o responsável por transmitir a cupópia, que é o dialeto da comunidade. Então, ele fez com que a cupópia permanecesse viva até os dias atuais, graças ao saber dele. Graças à fala, graças à oralidade. Porque se esses povos tradicionais, povos quilombolas, estão vivos até hoje, diante de tudo o que sofreram, foi graças a esses saberes.

sandra Um exemplo, meu filho é engenheiro ambiental. Ele entrou para engenharia, depois de quase um ano ele me ligou e disse: “eu vou sair, vou desistir”. Perguntei por quê. Aí, ele falou para mim: “mãe, os meus colegas estudaram na escola particular, e eu não. E, por isso, tenho dificuldade de fazer cálculo de física e química, que é muito pesado na minha aula”. Fiquei pensando, falei pra ele: “olha só, filho, quem é incompetente pra te receber é a universidade, não é você”. Infelizmente, a gente está enfrentando esse desastre também neste momento. Eu diria um desastre, porque é o maior poder que tem dizer que o seu entendimento, o seu conhecimento, é ruim. Então, respondi para o meu filho: “olha, o que é para nós química e física? Cálculo de física e química, a gente faz todo dia. No ritual, no canto. Para a gente fazer roça, a gente faz ritual pra pedir permissão pra aqueles espaços, pra aquelas plantas, então a gente a usa cotidianamente”.

Eu costumo dizer que existe muita ferida que a gente precisa cavar para a gente voltar e recontar a história brasileira, porque não foi contada ainda por nós mulheres, que estamos passando por isso. A gente está contando agora através dessa nossa conversa e eu acho que isso é uma coisa que tem que ser muito valiosa, que tem que ser levada como um valor mesmo: a nossa voz, as nossas falas.

“tive a honra de andar pelos mesmos caminhos
de onde saiu o nosso ancestral”

                        − Regina Aparecida Pereira

regina aparecida pereira Não nasci dentro de uma comunidade quilombola, estou lá há vinte anos. Sou uma mulher ativista, sempre participei de movimentos sociais urbanos. Conheci um membro do Quilombo Cafundó, em 2003, a dona Cida, uma grande liderança feminina. A nossa comunidade foi formada por matriarcas. Tanto que a gente tem a Vó Efigênia, e a gente só está ali por conta dela. Foi ela que fez todos os enfrentamentos, desde quando o pai dela, Joaquim Congo, faleceu. Foi ela que manteve a língua, foi ela que manteve a cultura, foi ela que manteve as terras. Foi ela que mostrou onde eram as demarcações. Depois que os grileiros tomaram o território, antes de a Vó Efigênia morrer, ela chamou os filhos e os netos e mostrou onde eram as demarcações. E foi em cima das memórias da Vó Efigênia que a gente conseguiu recuperar tudo. Tudo que a gente tem hoje, a gente deve muito a ela.

Acabei abraçando a luta da comunidade e uma das maiores dificuldades que eles tinham era a questão de acessar o território. Eles tinham já uma luta de cinquenta anos. O seu Otávio Caetano foi o primeiro homem preto a entrar com um processo de usucapião. Era um processo que já estava havia cinquenta anos no poder judiciário e nada tinha se resolvido ainda. Abracei a luta com a comunidade e começamos a correr atrás, procurar os órgãos competentes para resolver a questão e, em 2005, o governo propôs que as comunidades teriam que montar uma coordenação para ficar mais fácil a luta pelas necessidades.

Os membros do Cafundó foram proibidos de participar dessa coordenação, porque eles eram analfabetos, o que cai nessa questão que a Cintia colocou. Quando a escola saiu de dentro da comunidade para a cidade, ninguém concluiu, e muitos não sabiam ler e escrever. Foi um absurdo. Como uma pessoa que tinha todo o conhecimento histórico que eles tinham, falava outras línguas e tal, era proibida de participar porque não tinha uma leitura. Aí, eles pediram para que eu pudesse assumir esse papel. Em 2012, esses territórios começaram a voltar para a comunidade. Então, foi um grande avanço aqui no estado de São Paulo, foi a primeira comunidade a ter os territórios devolvidos pelo Governo Federal.

E aí a gente se deparou com uma outra questão: quem estava lutando eram os mais velhos, e quem ia tocar aquelas terras, seriam os jovens, seriam as crianças que estavam se dispersando da comunidade por todas as dificuldades, por essa questão de chegar na escola e ser ridicularizado porque eram crianças que falavam uma língua estranha, que eram de quilombo, que eram descendentes de escravos.

A gente começou a perceber que tudo o que a gente passava, os valores que a gente passava para as nossas crianças, acabava sendo desconstruído quando elas chegavam na escola. A gente percebeu que o problema não era só as nossas crianças, a gente tinha que começar a educar o município. Era importante que os moradores do município tivessem esse olhar diferenciado, porque não adiantava nada a gente construir, a gente mostrar valores para as nossas crianças, e chegar na escola e a gente ter vários momentos de ter que ir até o Ministério Público, por desconstrução e, muitas vezes, por crianças que chegavam em casa e falavam: “eu não quero mais ir pra escola”, por terem sofrido algum tipo de discriminação.

Agora em agosto [de 2023], a pedido do prefeito, nós do Quilombo Cafundó fizemos um trabalho de vivência com 310 professores da rede municipal, mostrando para eles o que era uma comunidade quilombola. Isso sem contar os preconceitos que a gente sofria em relação à religião. No trabalho que a gente faz, a gente não prega a religião, a gente conta a nossa história, e a nossa religião faz parte da nossa história também.

Desconstruir na cabeça das nossas crianças a questão de ser descendentes de escravos. Nós não somos descendentes de escravos, nós somos descendentes de reis e rainhas que vieram forçados para o Brasil e foram escravizados. Hoje, eu posso colocar com muito mais altivez, porque eu consegui falar isso para as crianças e provar isso para elas também. Falar  da língua. A nossa comunidade foi reconhecida por conta da língua.

Através da cultura, através da dança que as crianças gostam de fazer, da capoeira que elas gostam de fazer, a gente introduz a língua. Aí, a gente cria os nossos cantos, os nossos pontos, a gente procura transformar isso tudo na língua que é falada na comunidade. Na época da pandemia, quando todo o mundo estava se recolhendo, a gente conseguiu pegar uma parte da juventude. Tínhamos já uma quantidade de plantação, e então eles assumiram o restante. A gente começou a fazer cestas básicas e levar, inclusive, para comunidades que tinham uma necessidade maior do que a nossa, algumas comunidades indígenas próximas da nossa região. E foi um trabalho que, para os jovens, fez uma diferença muito grande. Eles se sentiram importantes. Eles sentiram que a gente não estava ali só pedindo e só precisando, a gente também podia fazer alguma coisa para ajudar, e isso era através da terra.

No ano passado, a gente teve a honra de ser visitado pelo Consulado angolano, que veio através da nossa língua. Eles vieram ver de perto a questão da nossa língua, porque ficaram sabendo que existia uma comunidade que mantinha o dialeto do quimbundo. A gente foi convidado a participar de um intercâmbio em Angola. E eu tive a honra de andar pelos mesmos caminhos de onde saiu o nosso ancestral. Eu tive a honra de ser homenageada e de receber a bênção do rei de Angola, que no dia 28 2 vai estar dentro da nossa comunidade para dar a bênção, porque é do mesmo reinado dele que saiu a língua quimbundo que a nossa comunidade mantém até hoje.

Então, hoje, as crianças veem isso com outros olhos. Eles estão assim: “nossa, o rei vai vir aqui”. E a gente tem a honra de dizer: “vocês fazem parte desse reinado, porque é dessa forma que o rei também está vendo”. Mais do que nunca, o educar as crianças da nossa forma, do nosso jeito, é muito importante não só para nós, mas para a sociedade também. Parte do que se ensina ou do que a sociedade lá fora aprende, sai de nós. Somos nós que estamos ensinando também.

“através da dança,
através da nossa esquiva”

                                      − Sandra Benites

cintia O que me incomoda muito é receber essas pessoas no nosso território e a pessoa ditar como é que eu tenho que apresentar isso. Foi o que aconteceu recentemente. Uma formação com 360 profissionais, e, um dia antes, eu fui orientada que, se tivesse algum lugar com algum santo ou alguma coisa que remetesse à religião de matriz africana, pra eu passar por isso de uma forma mais amorosa, sabe? Porque a gente vai desconstruir isso, mas a gente precisa desconstruir isso de uma forma amorosa. Eu não consegui responder sem um palavrão. Porque eles não dão nem o tempo de eu ficar feliz com esse trabalho e já puxam o meu tapete. Demonizaram, criticaram, mataram, e aí, beleza, agora eu tenho que falar disso na escola, então vamos lá. Como eu disse a vocês, minha família teve seu quilombo exterminado – tacaram fogo, mataram pessoas –, e eu que tenho que tomar cuidado pra contar essa história? Está muito errado. E tanto no Quilombo Caxambu quanto no Quilombo Cafundó, quando esses fazendeiros compraram essas pessoas, o mais velho com uma idade aparente de doze anos, essas crianças passaram pelo processo de catequização, e eu tenho que tomar cuidado com a forma como eu falo.

A gente trabalha com turismo pedagógico. Recebe grupos e conversa, faz a parte histórica, algumas oficinas culturais. Uma dessas pessoas postou no Instagram uma foto da capela. Dentro da história do Quilombo Cafundó, essa capela era uma imposição da Igreja, e não foi destruída porque foram construídos vínculos afetivos ali dentro. Quando o fazendeiro falece, eles introduzem o dialeto e os tambores. Eles ressignificaram; então, a capela permanece ali. Tinha uma foto minha na frente da capela, era uma sexta-feira e eu estava de branco, com uma criançada na minha frente e eu conversando com eles. Uma mãe raivosa, xingando muito, tentou agredir a diretora da escola porque permitiu que os alunos visitassem um lugar de macumbaria, um lugar de feitiçaria. Eu conto para vocês um detalhe, o filho dela não foi. O que incomodou foi a minha presença. Foi o meu território. Ela se sentiu atacada, ela se sentiu ofendida pela nossa existência, pelo nosso território.

Quando eu era pequena, roupa de santo era estendida atrás da casa pra ninguém ver. Até as saias que a gente dança jongo. Minha mãe falava: “Cintia, passa o povo aí e eles ficam olhando, e aí eles não dão tempo de você explicar”. Explicar o quê? Entendo que ela fazia isso tentando me proteger. Ela pede muito que eu faça isso com os meus filhos. Agora é diferente. Eu tive que construir isso em mim, tentar melhorar isso na minha mãe, curar essas feridas dela. O que a gente não pode deixar acontecer é esse silenciamento, esse massacre acontecer com os nossos filhos. É tão absurdo que, quando a gente foi abrir o boletim de ocorrência, ninguém na delegacia sabia em qual artigo se encaixava. Porque ninguém tem coragem de falar. Sempre foi uma brincadeira: “ah, mas não falou sério”; “ah, não, eu estava brincando”. Acho que dentro da escola ainda é muito perigoso.

Se você fica na comunidade, você é cobrado: “ah, mas você tem que tentar alguma coisa, tem que sair, tem que estudar”. Se você sai, você também é cobrado. Se você briga, você é cobrado, porque tem que resolver de forma amorosa. Se você não briga, você é cobrado. Por que você está construindo e o quê? O que você está desconstruindo, o que você está somando? Chega uma hora que você fala “ah, eu só queria estar aí”, sabe?

regina A gente tomou a atitude e falou: “vamos fazer o boletim de ocorrência sim”. Chegou lá na delegacia e a gente falava que era um boletim de ocorrência sobre discriminação racial, e eles queriam colocar outra coisa. A gente ficou lá até eles acharem o artigo onde se enquadrava. Conseguimos mais ainda; a gente conseguiu que a cidade se levantasse em favor. Que todo o mundo fosse lá. Pessoas que a gente nem esperava, até o prefeito, até o delegado, acabaram se posicionando pela primeira vez em favor da comunidade em relação ao que aconteceu.

 

A gente ser visto como macumbeiros por conta das ervas que a gente usa ainda dentro da comunidade, que a gente preserva pra fazer um chá, pra fazer um tempero, pra fazer o próprio alimento. Hoje criaram as farmácias vivas. E o que são? São as ervas que as nossas ancestrais sempre cultivaram. Então, está tendo uma controvérsia aí. Porque eles tentam nos demonizar, mas acabam usando o que é nosso, só trocando o nome. A gente também tem que ficar muito esperto para não deixar que se apropriem do que é nosso e trocarem o nome. Por isso, dentro da nossa comunidade, a gente ensina hoje aos nossos jovens a serem protagonistas das suas histórias. E dos seus saberes também.

sandra Sou professora, sou indígena guarani também. Entendo essas preocupações. O Conselho Tutelar entra muito nas aldeias hoje pra dizer o que você tem que fazer e o que você não pode fazer, isso tem que ter um cuidado também. Isso é muito importante para nós, inclusive para pesquisarmos como indígenas. Existe essa confusão muito grande exatamente pelo processo da colonização. Porque, aí, o outro diz pra você: “Isso aqui não pode, isso aqui pode”. Eu acho engraçado que hoje todo o mundo fala que até certas idades não pode fazer coisas. Fiz recentemente um debate sobre isso, sobre o Mato Grosso do Sul especificamente, e tem uma antropóloga não indígena, Juruá, estudando sobre isso. Sou também antropóloga, pesquiso também sobre influência, e aí quem chamaram para fazer consultoria para discutir com juízes, inclusive, pessoas de fora, pessoas brancas, mas não me chamaram, não chamaram outro pesquisador indígena. Tem muita pesquisadora fazendo pesquisa. Mas não chamam os quilombolas pra discutir o que é essa infância quilombola. Eu sei, de modo geral, o que é a infância guarani, porque eu escutei muito os mais velhos. Escutei, e também vivenciei isso. Nós, indígenas pesquisadores, pode ser quilombola também, que fazemos essa ponte. A gente tem que pesquisar aqui, e a gente tem que pesquisar aqui também. Eu acho que isso é uma forma de a gente, hoje, fortalecer o nosso meio. De fazer esse debate que é mais específico. Muitas das vezes para a gente entender essa questão de o que é essa infância guarani. Infância guarani de uma comunidade guarani do Espírito Santo, eu escuto a comunidade falando. Eu escuto de lá de Santa Catarina, que também tem uma outra realidade.

A criança não tem mais direito de pescar, de fazer roça, porque está cheio de eucalipto. É diferente também das crianças de Angra dos Reis, elas ainda têm rio na aldeia, vão pescar, vão aprender, vão fazer roça, vão fazer casa com a comunidade. Então, depende também do contexto de cada lugar. Eu acho que isso cabe à própria comunidade trazer a partir das suas necessidades, do seu contexto local. A luta, o que nós ensinamos hoje, não é a universidade que vai dar para a gente. A gente precisa levar da nossa comunidade. A gente precisa entender o que a gente de fato quer.

Para concluir a minha fala, eu quero muito agradecer mesmo. Fiquei muito feliz e emocionada também. Acho que quando a gente trata de educação, saúde, conhecimento, a continuação da nossa existência como quilombola, como indígena, como outras comunidades que lutam pelo mundo, na verdade, é lutar pelo seu território. Lutar pelo seu chão. A nossa educação está no fazer do dia a dia. Isso não é só o desafio na escola ou de outras pessoas, é nosso desafio como todos ou todas. É um desafio mesmo, porque, na vida, a gente tem que escutar o outro. Eu sempre falo que a dança de esquiva, dançar no iraijá, nós ensinamos isso. Porque é um caminho que a gente constrói através da dança, através da nossa esquiva. Porque a esquiva também faz parte do nosso fortalecimento.

É isso que a gente precisa compreender do outro, o que é o outro, o que [o outro] traz. Acho que isso também requer um tempo maior, porque a escola tem um padrão: “Ah, em certo tempo você vai terminar tal coisa”. Acho que isso não leva ao conhecimento do outro. Fortalecer o conhecimento do outro não é só na escola. É um direito da humanidade que a gente precisa estar juntos pra poder de fato abraçar a nossa causa, as nossas diversas causas, que isso faz parte da nossa vida. Acho que isso é importante para a gente sempre continuar respeitando essa especificidade de cada um, que é um desafio muito grande. Mas nós somos artistas, nós somos sabedores, criadores das coisas, das artes. Eu me lembro que, recentemente,a gente falou do que é a floresta para cada um. Cada um de nós tem a sua floresta dentro de si. Às vezes, falta chão para a gente criar algo que é importante para cada um.

regina Mais uma vez, eu agradeço estar aqui. Agradeço também esse apoio de vocês para a gente se expressar e contar um pouco da nossa história.

cintia Eu, mais uma vez, muito agradecida pela oportunidade. Me reconheci muito em várias falas, estou muito feliz e fortalecida. É importante pra gente honrar quem veio antes. E é importante nos fortalecer e fortalecer a galera que está vindo aí. Grata pela escuta.

Sandra Benites, Cintia Aparecida Delgado e Regina Aparecida Pereira. Foto: © Levi Fanan/Fundação Bienal de São Paulo

 

    • Em Aqui, numa coreografia de retornos dançar é inscrever no tempo: publicação educativa da 35a Bienal de São Paulo: coreografias do impossível. São Paulo: Fundação Bienal de São Paulo, 2023.
    • No dia 28 de outubro de 2023, Tchongolola Tchongonga Ekuikui 6º, rei de Bailundo, na região central de Angola, visitou o Quilombo Cafundó.

Sobre a autoria

Cintia Aparecida Delgado é  representante cultural do Quilombo Cafundó, guia de turismo social e produtora cultural. Descendente do extinto Quilombo do Caxambu, iniciou o trabalho de resgate e manutenção da cultura quilombola em 2002, desenvolvendo atividades de preservação da cultura local. Atua como membro do conselho de turismo da cidade de Salto de Pirapora (SP) e desenvolve trabalhos de energização e autocuidado com a magia das ervas desde 2020.

Regina Aparecida Pereira é filha de Teodoro Martins Pereira, quilombola mulungo da Bahia. Em 2003, conheceu seu companheiro, o griô Marcos Norberto de Almeida, bisneto de Joaquim Congo, descendente direto da Comunidade que deu origem ao Quilombo Cafundó e presidente da Associação Remanescente de Quilombo Kimbundu do Cafundó, passando a atuar ativamente na comunidade e do processo de regularização de suas terras. Ali fundou o grupo Mulheres Quilombolas do Cafundó, Grupo de Jovens, Grupo da Agricultura e o Grupo Turi Vimba. É membro do conselho de turismo e Secretária no Quilombo Cafundó, compositora, jongueira e artesã.

Sandra Benites (ara rete, em guarani) é pesquisadora, curadora e ativista de origem Guarani Nhandewa. Atual diretora de artes visuais da Fundação Nacional de Artes (Funarte), também é membro do conselho curatorial da 35ª Bienal – coreografias do impossível.