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Nhe’ẽ para os Guarani (Nhandewa e Mbya)

Existem vários sentidos para as palavras nhe’ẽ e aywu em cada grupo Guarani. Geralmente, essas duas palavras são entendidas como espírito, ser, vida, palavras, falas, som que vem do py’a. Py’a traduzimos literalmente como estômago, mas essa expressão faz referência àquilo que fica no peito, que nós, Guarani, chamamos nhe’ẽ rapyta, a base fundamental de nhe’ẽ, aywu e sentimento. 

Para esclarecer melhor, darei exemplos dos significados de aywu e nhe’ẽ para os Mbya e os Nhandewa, que pude compreender melhor por ter vivido na aldeia Guarani Mbya, no Espírito Santo, onde fui professora de crianças durante sete anos. Atualmente, a comunidade guarani do Espírito Santo se reconhece como Guarani Nhandewa. Na minha experiência como professora, passei a usar as duas falas que aprendi, mbya e nhandewa. E eu mesma sou Nhandewa. 

De acordo com o uso feito pelos Guarani Mbya da aldeia do Espírito Santo, aywu é a palavra que é utilizada no dia a dia, na fala comum, como, por exemplo, nas frases: 

xe aywu porã – “falei bonito”
aywu reko rei – “palavra à toa”  

A “palavra à toa” não é vista positivamente, dá uma ideia de que é palavra jogada fora. É diferente de aywu xe (“desejo de falar”), que seria característico de uma pessoa que não sabe guardar segredo.

Já a palavra nhe’ẽ apresenta outro tipo de complexidade. Nhe’ẽ é a fala de momentos específicos, como aqueles da casa de reza durante a fala religiosa, quando se trata de ser espírito. É também a fala utilizada para explicar a importância da origem do nome e de seu significado.  

Essas duas palavras – aywu e nhe’ẽ – significam, no fundo, a mesma coisa, embora existam diferenças nas variedades mbya e nhandewa. Para os Nhandewa da aldeia Porto Lindo (MS), da qual faço parte, aywu significa palavra sagrada e é o inverso da palavra nhe’ẽ – que seria usada na fala comum do dia a dia entre nós. Um exemplo: 

nhe’ẽ rei – “palavra à toa”
nhe’ẽ se – “desejo de fala” (a pessoa que não sabe guardar segredo)

Ainda, nhe’ẽ significa palavra sagrada quando se refere a um ser espírito. Os Nhandewa se referem a uma pessoa frágil como nhe’ẽ kangy, e a uma pessoa forte como nhe’ẽ mbarete. Essas palavras, portanto, têm mais ou menos o mesmo sentido para os Mbya e para os Nhandewa.

Segundo xe djaryi (minha avó), nhe’ẽ é o que vem do amba (morada celeste), e, quando uma pessoa morre, o nhe’ẽ retorna para o amba de onde veio. Desse modo, o nhe’ẽ da pessoa que morreu pode voltar. Por exemplo, eu acredito que o nhe’ẽ do meu sobrinho que faleceu voltou sobre meu filho caçula e voltou para mim. 

Para nós, Nhandewa, aywu significa palavra sagrada, que não é falada no dia a dia. É palavra sagrada usada no lugar onde é realizado o ritual, principalmente por pessoas como xamõi e djaryi. No entanto, quando se trata de um espírito ou ser pessoa – que entendemos como sagrados –, usamos nhe’ẽ, e não aywu. Raramente eu ouvia “aywu da pessoa” ou “aywu do fulano”, sendo mais comum usar nhe’ẽ quando se fala de alguém. Geralmente, quando se realizam batismos, os mais velhos Guarani Nhandewa da aldeia Porto Lindo falam aywu, mas na hora de dar nomes para as crianças sempre falam nhe’ẽ. Mas também, como já comentei, para os Guarani Nhandewa de Porto Lindo a palavra nhe’ẽ é a fala cotidiana. 

Desse modo, eu pude perceber que a palavra nhe’ẽ é entendida por todos os Guarani como sagrada quando se trata de um ser espírito e um sentimento (py’a). Existem nhe’ẽ porã, nhe’ẽ wai, nhe’ẽ kangy, nhe’ẽ mbaraete, nhe’ẽ katu, nhe’ẽ gatu e assim por diante. Nhe’ẽ porã. é “palavra boa, bonita, linda”; é muito usada para dar conselho, para ser dirigida à pessoa que está emocionalmente abalada ou com raiva. Nhe’ẽ wai é “palavra feia, ruim, agressiva” e é usada geralmente pela pessoa que não está bem. Nhe’ẽ mbaraete é aquela das pessoas fortes, seguras e corajosas. Para os Nhandewa, pessoas que falam muito possuem nhe’ẽ gatu. Já pessoas sensíveis, que sabem falar com tom de voz calmo, possuem nhe’ẽ katu – fala essa que fortalece a pessoa que está escutando, passa segurança àqueles que estão com nhe’ẽ fragilizado 

Cada nhe’ẽ é um processo que possui vários ritos de passagem, sendo direcionado a cada etapa em que se encontra cada Guarani. É um caminho (tape) para a construção de todos os passos do indivíduo no grupo, lembrando-o sempre do coletivo. É importante destacar de cada indivíduo o estado em que ele se encontra emocionalmente, por isso esses aywu ou nhe’ẽ porã – fala boa, ou boa fala – dependem do coletivo, do espaço dos elementos que formam o ser guarani. O ser guarani é construído por um conjunto de fatores. Para aproximar as expressões em guarani de suas traduções em português, eu diria que, para nós, Guarani, linguagem e o conceito de nhe’ẽ porã indicam a construção de um ser nhe’ẽ mbaraete, que significa uma pessoa alegre, tolerante, paciente, que sabe escutar com sentimento. É uma pessoa considerada saudável, forte, que tem facilidade de superar qualquer desafio e é arandu (sábia). Nhe’ẽ mbaraete também está relacionado com ritos, cantos, mitos e práticas do nhandereko, nosso modo de ser. 

Para seguir as regras guarani, é necessário compreender bem as palavras, seus significados e, principalmente, seus poderes de sentido. Entendo que é a partir de um processo, da prática do dia a dia e da forma de interpretar a vivência em grupo e entre grupos que cada indivíduo guarani vai adquirindo a boa fala em cada etapa da vida. Porém, é preciso que cada um tenha a possibilidade de construir o ser guarani no contexto no qual está inserido. Falar nem sempre é falado: é apenas vivido, sentido, experimentado. Isto é, falar muitas vezes não é visível nem traduzido em palavras; é expressão do coletivo para o indivíduo. 

Falas são palavras que vem do py’a, portanto cada palavra falada tem seu efeito, que são as reações às expressões. Enquanto expressões, muitas falas não têm como ser traduzidas, sendo apenas, talvez, possível que sejam demonstradas. Quem pode captá-las são aqueles que estão aptos a compreender. Assim, percebo que há uma dificuldade de interpretação, e até de compreensão, do mundo dessas línguas faladas. No meu entendimento, não são apenas os não falantes que têm dificuldades de compreender a complexidade da língua guarani por inteiro. Os próprios Guarani falantes têm algumas dificuldades de perceber o que seria uma boa fala. Quando se trata de tradução e bilinguismo, preciso entender também o mundo da língua do outro para traduzir para o português, por exemplo. Para evidenciar em português a suavidade da língua guarani, preciso transmitir aspectos do guarani através de metáforas. 

Pude perceber que muitos Guarani que vivem mais tradicionalmente têm facilidade de ensinar suavemente seus conselhos por meio da fala, porque conseguem emocionar, encantar e convencer sem usar palavras fortes, ou seja, sem fazer uso de um tom de voz alterado. Para nós, Guarani, todos os espaços são importantes para nhomongueta (dialogar): nas reuniões da comunidade, na casa de reza, na família, entre irun (amigos, amigas), durante as atividades de plantar, na construção da casa etc. 

Existem palavras que podem ser ditas para brincar, outras que são usadas durante ritos; existem os cantos e também falas para zombar do outro. E existem as falas das mães, que são também os cantos de ninar que cada uma vai criando. Mas é preciso ter certos cuidados. Certas falas são comparadas a bichinhos pelos quais podemos nos encantar ou que podem nos encantar. Cada um desses bichos tem suas narrativas, que contam processos de encantamento. Segundo os mais velhos, aqueles que se sentem mais espertinhos caem nas palavras desses seres sarcásticos. 

Palavras engraçadas, geralmente, são usadas pelos Guarani para enganar a raiva e as decepções, sobretudo quando geram uma crise de risos na pessoa guarani. Esses risos muitas vezes não são relacionados apenas a coisas engraçadas, são também uma forma de descontaminar o ambiente, afastando a tristeza ou aquilo que pode causar algo de ruim aos outros. Para não se deixar levar pela tristeza e pela raiva e transformar o nhe’ẽ wai (ruim, mal, feio), os risos se transformam no oposto, o riso excessivo, que também pode ser sinal de raiva ou tristeza. Um bom falante Guarani sabe superar, por isso é importante treinar seu ouvido e coração py’a. Assim, fica mais fácil controlar seu ser, essa pessoa sendo geralmente mais saudável. Mas, para preparar a pessoa, como também para saber falar e ouvir, é necessário treino. Trata-se de ouvir com o ouvido e colocar no coração (py’a), não apenas ouvir por um ouvido e mandar para o outro. Ouvir e sentir no py’a, colocar no py’a re (guardar no coração). Para isso, é preciso tempo, atenção e cuidado minucioso para cada Guarani. Por isso, a grande maioria deles não faz perguntas sobre algo que não sabe, mas sim sobre algo que já sabe. Perguntar o que não sabe é uma forma de provocação, é um sinal de que a pessoa não está de acordo com aquilo que está sendo dito ou proposto. 

A maioria dos Guarani não gosta de gente que fala muito, que emite muitas palavras sem necessidade. Essas pessoas não são bem vistas: segundo os (as) anciãos(ãs), são pessoas que têm dificuldade de concentração. Uma palavra wai, nhe’ẽ wai, deixa o outro machucado, triste, pode até mesmo ferir profundamente e abalar a vida de alguém. Por essa razão, as palavras para nós, Guarani, devem ser construídas e emitidas como nhe’ẽ porã, ou seja, como aywu porã. Eu ouvia muito minha avó dizer que uma mãe que está grávida não pode falar que não vai querer o filho quando nascer, em nenhum momento. Neste caso, pode ocorrer, depois do nascimento e quando a mãe menos espera, de a criança querer voltar para o amba (morada celeste). Os mais velhos sempre orientam as mães a não falar palavras à toa por impulso, na hora da raiva, se referindo aos filhos. Houve um caso de uma mãe que estava esperando um filho e, em um momento de raiva, falou que não iria querer o bebê quando nascesse. Essa criança nasceu e, quando a mãe já estava esquecendo aquilo que tinha falado, quando menos esperava, a criança ficou doente e faleceu. Foi muito difícil para a mãe superar a dor da perda do filho. Em outros casos, quando acontecer de a criança não voltar – pois isso não significa apenas literalmente morrer –, ela pode se tornar uma pessoa problemática, que dará muito trabalho aos pais. 

A fala boa (nhe’ẽ ou aywu porã), para os Guarani, não é apenas a escrita, é a vivida; nem sempre palavras e fala com emoção passam para a escrita. O problema surge do fato de que nem todas as palavras e jeitos de se expressar podem ser escritos. Há uma limitação, sendo necessário arandu (conhecimento) para abordar assuntos específicos de forma compreensível. Partes do arandu dos Guarani são impossíveis de traduzir, porque existem conhecimentos que só podem ser compreendidos quando vividos. 

Por isso, para os Guarani, o que está no papel não é tão importante. O que causa um efeito imediato são as práticas do dia a dia. Os diferentes conhecimentos dos juruá estão no papel, ficam parados e não acompanham o movimento, omyĭwa’e e guata, o caminhar. Nós acreditamos mais na nossa história, porque ela nos ensina a construir teko porã, o “bem-viver”. Minha avó dizia que não se pode acreditar muito no papel, pois o papel é cego, a escrita não tem sentimentos, não anda, não respira, é história morta. É preciso ter cuidado com isso, apesar de que hoje em dia faz parte da nossa vida também. Nós, Guarani, temos a ideia de que sempre precisamos andar para a frente (guata tenonde), nessa caminhada que não sabemos como vai ser. Para se preparar e enfrentar o caminho com sabedoria, é importante guardar (nhongatu) nossa sabedoria para quando precisarmos.

About the author

Sandra Benites (Ara Rete, em guarani) nasceu na Terra Indígena Porto Lindo (MS). De origem Guarani Nhandewa, é mãe, pesquisadora e ativista Guarani. Atua como supervisora de programação cultural e exposição e como conselheira do Museu das Culturas Indígenas, em São Paulo, e também é membro do conselho curatorial da 35ª Bienal.

References

Texto publicado originalmente em Campos – Revista de Antropologia / Universidade Federal do Paraná, v. 21, n. 1, 2020.