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Educação ou vigilância?

Costumamos escrever textos com uma voz empresarial. Anunciando serviços, propagandeando vantagens. Temos um site igualzinho ao de uma empresa de segurança privada. Nos vestimos com ternos, fazemos a barba e o cabelo, prezamos pela seriedade. Um broche em nossa lapela nos identifica: Amador e Jr. Segurança Patrimonial Ltda. Permanecemos no canto de uma exposição de arte, aparentemente vigiando, atentos. Mas, hoje, como vamos nos apresentar a vocês, gostaríamos de falar com outra voz.

A Amador e Jr. Segurança Patrimonial Ltda. é formada por nós, Antonio Gonzaga Amador e Jandir Jr., duas pessoas que se conheceram trabalhando como educadores em um museu. Mas, diferentemente de nossa profissão, na Amador e Jr. fazemos performances em que atuamos em instituições culturais sempre vestidos de terno, uniformizados como seguranças, no entanto fazendo coisas fora do comum. Isso propicia que as ações possam ser facilmente confundidas com o trabalho de um vigilante. Performances, portanto, que se fazem pouco visíveis, que prescindem do palco, que acontecem durante o dia todo em que a instituição funciona. Ora simples, como quando permanecemos de olhos fechados durante o horário comercial, ora notáveis, como quando deitamos no chão da galeria. E, enquanto há pessoas que parecem confusas ao verem esses estranhos serviços, outras não percebem nada, de modo que uma das interações mais comuns é nos perguntarem, recorrentemente, onde fica o banheiro. 

Assim, respondemos perguntas como essa enquanto seguramos cadeiras, esfregamos o rosto em janelas, nos deitamos, trabalhamos com dentes postiços de ouro, fazemos exercícios… Atos surreais e interações distraídas que, por mais estranhos que possam parecer, já experienciamos outras vezes, de outros modos, quando trabalhamos em museus e centros culturais, abordando visitantes. 

Sobre isso, vale retomar: trabalhamos como educadores, sim, mas isso quase nunca excluiu o acúmulo de funções. Mesmo quando contratados para atuar como mediadores ou guias, costumeiramente nos vimos também com a responsabilidade de vigiar galerias, orientar os públicos  e cuidar de obras de arte. Ocupações em que usar a voz é fundamental. Pois, se fazendo visitas falamos alto, perguntamos coisas e rimos, ao repreender determinadas ações, podemos nos aproximar e falar baixo, mas, se estivermos estafados ou distantes demais, talvez aconteça de elevarmos a voz, para dizer o que não pode ser feito. — Ei, com licença, não é permitido fotografar com flash! — Senhora, por favor, não toque na obra!

falar 

Amador e Jr. Segurança Patrimonial Ltda., Falar, 2021, croqui, nanquim sobre papel, 21 x 29,7 cm.

Era 2014 e eu trabalhava em um centro cultural no Rio de Janeiro. Ali era só ficar dentro da exposição, seis horas por dia, seis vezes na semana. Não dava para sentar. Uma mediação bancária. Quando falavam comigo, normalmente era uma informação técnica. Quando eu falava com alguém, era uma atenção à norma. Às vezes, tentava começar uma conversa sobre a exposição. “Só tô dando uma olhadinha”; “Tô esperando o horário do cinema”; “Acho legal isso que vocês fazem, mas só tô procurando o banheiro”; “…”; essas eram algumas das respostas. Quando alguém estava a fim de trocar ideia, o que era nosso trabalho de mediação, era ótimo, mas raro. Ótimo, pois estava trabalhando naquilo que queria fazer. Ótimo, pois o tempo passava mais rápido. Na época, pensava em como mediar mais, como fazer o tempo passar. Eu comprava marmita na rua e comia em trinta minutos. Era para ser quinze minutos, mas conseguimos trinta. Nessas idas à rua, sempre se passa por gente que distribui panfletos. Sabe? Ouro, joias, religiosos, mundanos e muitos outros. Uma mediação bancária talvez possa ser iniciada na panfletagem. Mediação de panfletagem. 

Funcionou assim: eu fiquei na porta da exposição segurando os fôlderes de visitação da mostra. Quando alguém entrava, eu entregava o fôlder e falava alguma permissão relativa à poética ou à temática da exposição. Por exemplo:

Exposição de fotojornalismo: 

— Olá! Queria informar que é permitido documentar a realidade.

Exposição de pintura moderna brasileira:

— Olá, tudo bem? Só avisar que é permitido pintar de maneira não acadêmica. 

Exposição de patrimônio imaterial: 

— Olá! Manifestações não materiais são permitidas por todo o ambiente.

Normalmente, as pessoas só agradeciam, sem perceberem nada. Vez ou outra, alguém não entendia e perguntava: “O quê?”, e o tempo passava mais rápido. O que nos lembra Falar (2021), um de nossos serviços. 

A premissa da performance é simples, uma instrução para que aconteça em qualquer país não lusófono, mesmo em certos países latinos é válido evitar a performance. Porque, quando abordados, devemos responder em português, interditando um tanto a funcionalidade servil que ordena alguns corpos em exposições de arte. Não à toa, no croqui que criamos para ilustrar a proposta, a frase dita pelo segurança é replicada por um “What?”, dito pelo visitante fora do quadro, assim como o “O quê?” ouvido por um de nós quando panfletou e disse absurdos dentro de uma das primeiras exposições em que trabalhou. 

Por isso, aqui, entra o aspecto que gostaríamos de pontuar. Já havíamos notado, desde que começamos a Amador e Jr. Segurança Patrimonial Ltda., que nossa escola de performance foi o trabalho assalariado em que permanecemos de pé por muito tempo, atentos, vigilantes, aprendendo as brechas e os dribles possíveis, fundacionais a uma proposta performática, com nossos corpos implicados. Mas agora percebemos uma interdependência entre a Amador e Jr. Segurança Patrimonial Ltda. e a prática da educação. Uma relação que fundou tanto algumas de nossas performances com base nas experiências como educadores – mesmo que extrainstitucionais, como a que descrevemos anteriormente –, como também algumas das nossas performances, posteriormente, inspiraram nossas práticas educativas. 

 

vigilante 

Amador e Jr. Segurança Patrimonial Ltda., Vigilante – sobre os ombros de gigantes, 2021. Curadoria: Raphael Fonseca. Galeria Nara Roesler, São Paulo, SP. Foto: Flávio Freire

Por exemplo: era fim do mês, e precisava entregar a atividade que realizaria em um domingo, como parte da programação do museu. Como educador, entreter, mediar e controlar eram demandas requisitadas por diversos setores que, muitas vezes, discordavam quanto ao meu papel, contudo, sem que essas discordâncias resultassem uma definição clara, conjunta, do que significava educar em uma exposição. E, muito em razão disso, não estava certo se a ideia que tive seria acolhida, já que quis, simplesmente, me vendar, permanecendo disponível ao público.

Apesar do meu receio, as pessoas que visitaram meu trabalho em certo domingo à tarde viram, em uma exposição, um homem uniformizado, sentado no chão, com um tecido vendando seus olhos. Era eu, que consegui convencer meus superiores a realizar a atividade. Não foram poucas as pessoas que falaram comigo durante essa ação. Por não usar o recurso da visão, nos sensibilizamos sobre assuntos como meditação, interioridade, sobre nós mesmos como pontos irradiadores da constituição de sentido ao mundo. Em determinado momento, uma voz conhecida se aproximou de mim. Era o curador da mostra, que demonstrou entender a relação entre minha cegueira e o assunto que sua exposição suscitava, tão afeita ao que há dentro das coisas. Ali, tive a certeza de que represália nenhuma iria me afetar por parte do público ilustrado daquele museu. Que eu estava validado por mais de um setor da instituição; quase em uma verificação em duas etapas, em uma contrarrevisão. 

O que foi diferente de fazer a performance Vigilante (2019). Ficar de olhos fechados, quando se é um segurança, evoca insegurança, faz o público perceber o papel das pequenas retinas de um homem para seu conforto, até pode evocar a revolta de alguns, daqueles que não percebem uma performance acontecendo ali. Mas, para nós, a primeira experiência tinha sido lançada anos antes, na ação educativa que descrevemos. Sabíamos o que era ficar voluntariamente cego, ainda que a recepção a esse mesmo gesto fosse completamente diferente. Pois, quando vestidos de terno, a definição funcional é mais evidente: ela exige que vigiemos, acima de qualquer coisa. O que tem a ver com nossos olhos abertos.

 

ronda

Amador e Jr. Segurança Patrimonial Ltda., Ronda, 2023. 35ª Bienal de São Paulo − coreografias do impossível. © Iza Guedes / Fundação Bienal de São Paulo

Mas também houve uma experiência inversa, quando uma de nossas performances foi reperformada em uma visita educativa. Em Ronda, realizamos uma única volta em todo o espaço expositivo durante o horário de funcionamento. Nela, o que acontece, normalmente, é que andamos vagarosamente. 

Realizamos Ronda, pela primeira vez, em 2018. Em 2019, trabalhava em uma galeria em que uma instalação ocupava toda a sala. A instalação era um conjunto de móbiles coloridos, com formas geométricas e brilhantes que vinham do Carnaval, colocados no teto. O chão era revestido por um piso emborrachado dourado. A premissa do trabalho era provocar outras formas de estar naquele local, por meio dos elementos ali dispostos. Em uma visita educativa com estudantes do Ensino Fundamental II, resolvi experimentar essa premissa com a performance: e se a gente andasse pela sala, observando ao nosso redor, com velocidades diferentes? E se a gente tivesse que chegar a determinado tempo no final da sala? Fomos experimentando essas velocidades e tempos em nosso caminhar: chegar no fim da sala em um minuto. Agora, vamos voltar em três minutos. Repetir o trajeto em cinco. É possível fazer o trajeto em dez minutos? Cada estudante montou sua estratégia. Alguns andaram devagar, outros, em velocidade média, e, quase chegando ao final, esperaram o tempo passar. Teve gente que não quis participar, só ficou olhando a gente andar em diferentes velocidades. 

Uma forma de educação pode habitar aí: as múltiplas formas criativas de resolução de problemas. Pois pensamos que a criatividade não é exclusividade da arte. E não só o patrão, o professor ou o supervisor nos ensinam. Quem já não teve, ou já não foi, aquele colega que mostrou como aliviar o cansaço do trabalho? Quando fui técnico em eletrônica, um amigo me ensinou como instalar um emulador do jogo Mario Kart no computador velho do trabalho. Era o patrão sair, começávamos a disputar corridas. Do mesmo modo: nessa turma de Ensino Fundamental II, diante do exercício proposto, certamente alguns ensinaram uma malandragem aos outros. Devemos andar lentamente ou aproveitar a velocidade, parando estrategicamente para cumprir o mínimo, e não o máximo? A lentidão é uma lição nos ambientes fabris, mas uma lição dada pelos trabalhadores e alunos. Fazer menos, descansar, roubar o tempo que lhes foi roubado. Na escola, vale ressaltar ainda que estudantes ensinam uns aos outros a amplitude de possibilidades do próprio corpo. Lugar onde querem todos sentados, bolinhas de papel voam. Quando querem a educação física, a perna de pau inaugura a recusa.

 

imponderabilia institucional

Amador e Jr. Segurança Patrimonial Ltda., Imponderabilia institucional, 2023. 35ª Bienal de São Paulo − coreografias do impossível © Levi Fanan / Fundação Bienal de São Paulo

Enquanto isso, nos oferecem água a cada momento. Pessoas nos mesmos lugares que nós, e no mesmo tempo, não obtiveram essa gentileza. Uma pessoa passa entre nós dois com muito ímpeto, divertindo-se muito. Ao passar, arranca o meu broche, derrubando-o no chão. Apenas aponta e diz “Caiu aí!”, e segue seu caminho divertido. Uma pessoa para à nossa frente, em silêncio, e nos observa. Depois de alguns minutos, diz: “Eu entendi tudo, muito bom”. Podemos perceber o pensamento rizomático em seu olhar. O que pode ser imponderável dentro de uma instituição? O que pode ser ponderável? 

Nos processos de mediação das escolas-empregos pelas quais passamos, nos percebemos quase como uma lousa. Alguns talvez vejam Imponderabilia institucional (2023) – performance na qual ficamos, ambos, dentro de um detector de metais estilo portal, um de frente para o outro – e tantas outras de nossas performances como uma lousa vazia ou preenchida por equações complexas. A elas, falta um professor. Por sua vez, outros vão se perceber como o professor. Entender, explicar e interagir se torna, então, a ação em sequência. Uma lousa é um objeto passivo. Não reage, mas suporta olhares escrutinadores, rasuras, apagadores, tapas acompanhados de gritos com palavras de ordem à turma. Mas a verdade é que não somos lousa nenhuma. Somos sujeitos no campo ampliado da educação, esse que acontece infrainstitucionalmente. E nossas conversas miúdas, nossas pequenas desobediências, se quisermos seguir com as analogias escolares, são a didática da vez. Para essas analogias, múltiplas formas de comunicação são fundamentais. Seja a verbal, a não verbal, o corpo em movimento, o olhar ou outra ainda não inventada. Um ponto transversal nesse processo de mediação é um exercício de escuta. Escuta literal, escuta com o corpo, escuta com o espaço, escuta de si, escuta coletiva. E é difícil escutar. Às vezes, estamos cansados, às vezes, já sabemos o que queremos dizer, às vezes, temos um roteiro a seguir, às vezes, eu tenho que entregar um trabalho amanhã. No entanto, é na escuta que podemos descobrir o fazer diferente, o fazer junto, o fazer do impossível. Isso é uma troca. Não é possível escutar sozinho. É um exercício coletivo, feito à surdina. É a palavra mediação. Aqui, nossas performances, nosso trabalho assalariado, nossas raivas, as posições de aprendizes e mestres, nós… Aqui, tudo isso se confunde. Inevitavelmente.

Amador e Jr. Segurança Patrimonial Ltda., Cofre, 2023 35ª Bienal de São Paulo − coreografias do impossível © Levi Fanan / Fundação Bienal de São Paulo

About the author

Amador e Jr. Segurança Patrimonial Ltda. é uma série de propostas performáticas idealizadas e realizadas por Antonio Gonzaga Amador (Rio de Janeiro, Brasil, 1991. Vive no Rio de Janeiro) e Jandir Jr. (Rio de Janeiro, Brasil, 1989. Vive no Rio de Janeiro). Os artistas, camuflados como seguranças, questionam o papel dos corpos – marginalizados – de funcionários dentro de situações institucionais das artes através de ações inusitadas em espaços expositivos. Participou de exposições no Museu Paranaense (Curitiba, PR), Centro Cultural São Paulo (São Paulo), Museu da República e Museu de Arte do Rio (Rio de Janeiro).