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Desviar para se encontrar: reflexões com base no livro The Lesbiana’s Guide to Catholic School

Acompanhar a narrativa do livro The Lesbiana’s Guide to Catholic School [Guia lésbico para escolas católicas], de Sonora Reyes,1 me tocou profundamente. É uma daquelas leituras que, ao concluir, pensamos: “Como queria ter lido isto antes! Como teria sido incrível, quando adolescente, poder ler cada uma dessas palavras!” Independentemente do grau de identificação que cada leitor(a) possa ter com as personagens, esse livro é um convite precioso a pessoas de quaisquer orientações sexuais para que repensem seu fazer e seu lugar no mundo. Pensando em um bordado entre literatura e teoria, buscarei compartilhar neste texto um pouco da artesania que essa obra suscitou em mim.

Peço desculpas por dar spoilers da história e por fazer um resumo tão sucinto dela, uma síntese que em nada faz justiça à delicadeza dos detalhes, à ternura de cada cena e à emoção que senti ao longo de toda a narrativa. Mas não tenho a pretensão ou a presunção de fazer um resumo do livro; o objetivo é discutir alguns pontos como pistas para pensarmos nossas práticas profissionais, rumo a horizontes mais potáveis de existência.

O livro conta a história de Yamilet, de sua família, amigos, amores, de suas angústias e alegrias. Ela é uma jovem de 16 anos, que tem um irmão, Cesar, quase da sua idade. Ambos vivem com a mãe nos Estados Unidos, pois o pai foi deportado para o México. É uma família de origem indígena mexicana, que enfrenta o racismo em suas diferentes dimensões, na precarização financeira, no racismo institucional e na saúde mental, mas que também experiencia o cruzamento dessas violências com outras opressões, como a lesbofobia e a bifobia.

A história se inicia com a mudança de escola de Yamilet e seu irmão, por ocasião de uma bolsa que ele havia ganhado por seu excelente desempenho escolar. Enquanto a escola anterior era pública e precarizada, a nova escola é privada e católica, com uma estrutura muito maior; os alunos, em sua maioria, são pertencentes à elite branca da cidade. Uma das primeiras impressões de Yamilet ao chegar ao novo colégio é justamente que ela podia contar nos dedos a presença de colegas não brancos. Isso significava, portanto, que ela e esses outros colegas estavam em uma posição de hipervisibilidade, o que provocava nela desconforto e desgaste emocional. Por outro lado, é justamente nesse grupo de colegas não brancos que ela encontra amparo para sua existência, por meio dos vínculos que constrói com Bo (uma menina amarela) e David (um menino indígena Navajo), bem como com outros colegas brancos antirracistas, como Amber. Nessa escola, ela passa por uma série de situações de violência institucional por parte de algumas professoras e colegas, que adiante retomarei.

Pouco antes de ingressar na nova escola, Yamilet havia sofrido uma grande decepção amorosa, e, por conta disso, sua tristeza e sua mágoa ainda estavam latentes. Ela havia se declarado à sua melhor amiga, Bianca, que a rejeitara. A dor de Yamilet não era apenas em razão da não reciprocidade do sentimento, mas pelo modo como Bianca externara sua negativa. Bianca a fizera se sentir inadequada, suja, predadora, simplesmente por ser lésbica. Diante dessa situação traumática, ao ingressar na nova escola, Yamilet segue determinada a ser o mais heterossexual possível. Além disso, ela teme a reação dos pais, tem medo de ser expulsa de casa se descobrirem sua sexualidade, sobretudo porque, na sua idade e naquele contexto, ela não tinha condições financeiras para morar sozinha e se sustentar de maneira autônoma. Yamilet ajuda a mãe fazendo e vendendo artesanato e, aos poucos, faz uma pequena reserva para caso seja expulsa de casa.

Mesmo sendo muito próxima de Cesar, Yamilet se surpreende ao descobrir que o irmão é bissexual e tem uma relação amorosa com Jamal, e também que muitos dos conflitos dele na escola anterior se justificavam pela bifobia que ele sofria. Solidária ao irmão, Yamilet e Jamal simulam ser um casal, para que a mãe não desconfie de nada. O vínculo entre Cesar e Yamilet é muito bonito e profundo, e eles se apoiam e se fortalecem inúmeras vezes. É Cesar o grande encorajador para que Yamilet se declare para Bo, a menina por quem ela se apaixona. Apesar do apoio do irmão, a todo o tempo Yamilet sofre a ansiedade e a angústia por viver no armário, e só consegue de fato se declarar para Bo muito mais tarde − um momento muito terno e sensível, quando é correspondida pela amiga e pode, finalmente, vivenciar a alegria de sua afetividade/sexualidade.

Emocionalmente mais próxima do pai, Yamilet imaginava que a reação dele seria muito mais acolhedora que a da mãe, que era mais rigorosa com ela e, da sua perspectiva, destinava a ela menos carinho e atenção que ao irmão. Além disso, a mãe era uma cristã muito mais fervorosa que o pai, que era um ativista descrente de vários pressupostos religiosos. Apesar de sua expectativa, o pai não a ampara, ao contrário, mostra-se distante, deslegitima sua sexualidade associando-a a uma fase, por fim se afastando dela. A mãe, para sua surpresa, acolhe-a e também seu irmão de modo generoso e amoroso, reforçando que “se a Bíblia diz que não devo amar meus filhos, então a Bíblia está errada”. Essa sensibilidade da mãe foi acentuada por uma situação extrema, de ideação suicida de Cesar, ocasião em que ela se dá conta do quanto é importante proporcionar essa escuta e amparo aos filhos.

o que é o armário?

No senso comum, a noção de armário está muito relacionada a uma ideia de encobrimento, sobretudo quando se trata da vida sexual das pessoas LGBT. O vocabulário em torno desse tema costuma trazer ideias como saída e entrada, dentro e fora (do armário), bem como referências a assumir-se ou a confessar-se.

A pesquisadora de estudos de gênero Eve Kosofsky Sedgwick (1950-2009) conceitua armário como uma espécie de “segredo aberto”,2 um dispositivo de regulação da vida das pessoas LGBT, aparato com regras contraditórias e coercitivas, que borram as fronteiras entre privacidade, escolha, público e privado.

Ao contrário do que é compreendido no senso comum, o armário vai muito além de uma simples divisão entre dentro e fora. É comum que uma mesma pessoa LGBT possa estar fora do armário em algumas relações e não em outras; para algumas pessoas da família, talvez consiga dizer, para outras, não. Também no ambiente escolar e/ou de trabalho, é possível que haja relações nas quais encontre maior ou menor encobrimento da sexualidade. Mesmo alguém que, a princípio, estaria fora do armário para a maioria de seu círculo social pode novamente ser colocada em situação constrangedora quanto a isso; basta mudar de bairro, de cidade, de escola, e é como se tivesse que iniciar do zero todo o trabalho emocional.

No caso de Yamilet, uma das primeiras pessoas a quem ela conta ser lésbica é o colega Hunter, com quem ela não tem uma relação estreita de intimidade e confiança, mas, por conta das circunstâncias, ele acaba ocupando esse lugar daquele que escuta sua fala. Por mais que ela pensasse muito sobre isso, sobre quais seriam as condições ideais para partilhar, não foi possível ter esse controle completo. Apesar de seus receios, Hunter, o colega branco heterossexual e rico, não a julgou nem a expôs. Mas o pai, alguém que ela amava e em quem confiava, não reagiu desse modo. Dessa forma, percebemos que, por mais que se busque controlar e prever as situações, é sempre uma aposta, há sempre certo risco. Assim como Yamilet, muitas pessoas lgbt se culpam pela reação violenta que porventura recebam de outrem, como se o problema tivesse sido o momento de contar, o modo de contar, a quem contar. Na verdade, assim como “o racismo é uma problemática branca”,3 a lesbofobia também é uma problemática de quem é lesbofóbico.

O dilema do armário da sexualidade só se apresenta em virtude das violências de gênero. Não constitui uma escolha livre, uma honestidade em se assumir ou não, mas mostra quanto essa decisão é relacional. Como cobrar de alguém que nos diga algo se não produzimos minimamente um espaço de escuta? Nem sempre o que temos a dizer é algo fácil de ser dito, seja pelo conteúdo, seja por nosso receio de desagradar, entre tantos outros motivos. Por temer a reação do outro, suas chantagens, distorções, ameaças e punições, muitas pessoas adiam ou atenuam o que têm a dizer. E nem sempre é fácil se afastar; existem dependências financeiras e emocionais de toda ordem. Antes de apenas cobrar que o outro diga a verdade, é preciso averiguar se existe mesmo alguma abertura para a escuta.

Na história de Yamilet, ela temia ser expulsa de casa, não ter mais o amor dos pais; receava também ser ainda mais perseguida na escola. Nenhum desses receios deixa de ter alguma correspondência com a realidade; de fato, em muitos casos, é o que acontece. Portanto, não se podem diminuir os anseios de uma pessoa no armário, nem julgá-la pelo tempo que precisa para tomar suas decisões, especialmente quando se trata de um jovem, de uma adolescente, que tem com sua família uma relação de dependência financeira e emocional muito mais profunda do que um adulto.

Por outro lado, nessa tentativa de antecipar tudo, corremos o risco de preencher as palavras da outra pessoa, de pressupor que ela não conseguirá lidar com isso, escutar ou acolher, mas, em alguns casos, podemos nos surpreender. Ao contar para a mãe, Yamilet recebe carinho e amparo, algo que ela estava certa de que não receberia. Inclusive, essa empatia e sensibilidade não estão associadas diretamente ao grau de instrução, à geração ou afins; há muitas pessoas pouco escolarizadas que têm abertura para a escuta, ao passo que alguns, com formação acadêmica, perpetuam as discriminações. É importante sinalizar isso, porque alguns desses argumentos podem reforçar o racismo, que atribui a pessoas brancas, ricas e escolarizadas uma evolução moral, enquanto associa pessoas empobrecidas (em geral não brancas) à prática dos mais diversos preconceitos.

Em todo caso, o tempo em que Yamilet permanece no armário para a mãe, para o pai, para a colega por quem é apaixonada, é um tempo de muita angústia. De maneira que não falar também é um processo que não se faz sem custos. Por vezes, até mais altos do que aqueles da realidade de sair do armário.

Diante disso, percebemos que, contrariamente ao que se pode pensar, a situação do armário não deve ser individualizada. Inclusive, mesmo que a pessoa escolha permanecer no armário, ela pode ser, a qualquer momento, arrancada dele. Esse tipo de invasão do tempo e da privacidade amedronta pessoas LGBT, receosas de dar pinta de sua sexualidade. A cena da polêmica, da chacota, da vergonha e da humilhação é performada por pessoas lgbtfóbicas que, dessa negativação, positivam sua heterossexualidade como “normal”, como “natural”, como única forma correta de existência. Por isso, repito, o armário é uma estrutura que fortalece a norma da heterossexualidade. Em todo esse percurso há um desgaste emocional imenso produzido pela lgbtfobia; afinal, algum heterossexual pensa constantemente em como confessar que é hétero? Que pessoa heterossexual tem receio de ser expulsa de casa se falar da sua heterossexualidade? Ou de não ser mais amada pelas pessoas mais importantes de sua vida?

Todo esse custo emocional, invisível por vezes, faz com que crianças e jovens sejam simbolicamente expulsos da escola. No caso de Yamilet e Cesar, as faltas, o sono, o cansaço, eram consequências das violências que sofriam, ainda que, por parte da instituição, eles fossem os “alunos-problema”. Nesse caso, o que se percebe é que a instituição escolar era o problema, era a escola que contribuía para a evasão dos alunos todas as vezes que impunha a todos uma única fé, uma única sexualidade e um modo único de estar no mundo.

Quando jovens não se veem no currículo de maneira positiva, quando são invisibilizados e sua presença só é notada de forma negativa, quando não há comprometimento, apoio e solidariedade em relação às violências que vivem, como desejar continuar nesse espaço? É impossível que uma imposição dessa ordem não traga nenhum efeito − pode ser na forma de adoecimento, de explosão de raiva (como ocorre com Yamilet e Cesar), de insegurança em se posicionar, de enfraquecimento de vínculos, autoestima, autoconfiança etc. Assim, o sofrimento dos jovens LGBT não deve ser usado como uma prova de que precisam da cura gay, considerando que o que lhes impinge sofrimento é justamente a lgbtfobia, e é isso que precisa ser elaborado, erradicado.

Esses sentimentos vividos pelas personagens do livro, o receio de serem expostos, organizam a polêmica em torno do armário, que funciona como uma espécie de pedagogia e como

um ensinamento (ameaça) público a outras pessoas LGBT, em uma tentativa de dissuadi-las de serem o que são (porque não basta estar escondido, você poderá ser descoberto, o seguro mesmo é não ser). Assim, há um prazer específico em expor a sexualidade das pessoas lgbt

contra a vontade delas, ao mesmo tempo que há uma recusa em aceitar sua autoenunciação.4

Quando pensamos em nossa experiência como pessoas indígenas, também há algo em comum que se repete. É frequente nos chamarem de “índios”, de maneira pejorativa, para nos envergonhar, para que seja algo risível. Mas quando dizemos: “sim, sou indígena”, contestam, dizendo que não existem mais indígenas hoje. É como se a única maneira boa de ser indígena ou de ser LGBT fosse não sendo indígena e sendo heterossexual, um apagamento. O que há em comum nessas lógicas é a imposição de um tempo, de um marco temporal que nos coloca sempre fora/longe de como e onde deveríamos ser e estar.

Também por isso, quando uma pessoa indígena se afirma lgbt, é comum que haja um duplo estranhamento temporal. Se, por um lado, o racismo anti-indígena só pensa a existência de indígenas no passado, por outro, a norma heterossexual tenta desqualificar as dissidências de gênero dizendo que são coisa da moda, que são apenas uma fase passageira. Nessa ideia de moda, o que se coloca é a tentativa de dizer que aquilo seria algo recente e, portanto, falso. Já a heterossexualidade, não seria coisa da moda, visto que seria atemporal, natural, verdadeira. É como se a heterossexualidade fosse o original e as dissidências fossem as cópias. Em verdade, nossas existências indígenas e LGBT são contemporâneas e, embora alguns termos sejam mais recentes, a diversidade de práticas sexuais existe desde que existem pessoas no mundo.

Em nosso território, o primeiro caso conhecido de uma vítima dessas violências é o de Tibira, condenado à morte no século 17 por cristãos colonizadores, que introduziram seu corpo em um canhão, exigindo até o último momento que Tibira se arrependesse e pedisse perdão por seus pecados. Mas aqui cabe, assim como Yamilet, nos questionarmos: por que devemos pedir perdão por algo que não é errado? Por que pedir desculpas e autorização para existir à nossa maneira? Há quem diga que Deus ama o pecador, não o pecado. Mas não há como separar nossa sexualidade e nossa afetividade de quem somos.

Para os colonizadores, nossos ancestrais não eram considerados humanos, e por isso não eram definidos como homens e mulheres. Só era considerado humano quem se convertesse, quem se tornasse cristão. Não fosse assim, seria considerado selvagem, bárbaro. Nessa interpretação normativa, Deus tinha criado o homem para a mulher, de maneira que ser homem e ser mulher de verdade era ser heterossexual. Até hoje observamos esse raciocínio, quando dizem que os homossexuais são mulherzinhas e as lésbicas são machorras, maria joão etc.

Em 1551, o missionário Pero Correia registrou em uma carta seu incômodo com nossas ancestrais, que não queriam ser chamadas de mulheres, porque não eram heterossexuais:

E cometem o pecado contra a natureza, de maneira que há muitas mulheres (sic) que usam armas e seguem todos os ofícios como se não fossem fêmeas. Mantêm namoro com outras mulheres com quem se dizem casadas e a maior injúria que se lhes pode fazer é chamá-las de mulheres. De tal forma que quem lhes disser algo poderá correr o risco de que lhe atirem flechadas.5

Nossas ancestrais já entendiam que ser marcada como mulher era algo muito além de uma descrição meramente biológica, era o anúncio de um roteiro, no qual se deveria ser heterossexual, mãe, submissa ao marido, e assim por diante.

Por isso, antes de se colocar na posição de quem concorda ou discorda, de quem perdoa ou não, de quem aceita ou repudia, é necessário um questionamento anterior: não deveríamos ter o direito de concordar ou discordar de algo que não diz respeito ao nosso próprio corpo. Se a ideia que temos de homem e de mulher de verdade, do que é família, do que é pecado, não acolhe outras existências, não são elas que devem se encaixar em nossas categorias, somos nós que devemos revê-las.

Algumas pessoas dizem que são contrárias às sexualidades não hétero porque elas não seriam “naturais”. Para a religião dominante, apenas o sexo reprodutivo seria válido aos olhos de Deus, por isso até hoje o Vaticano proíbe o uso de preservativos, porque entende que eles já anunciam que aquele sexo será apenas por prazer. Assim, o principal incômodo com práticas sexuais de pessoas LGBT deriva do fato de acontecerem somente por motivos de prazer. Há um equívoco nisso, pois pessoas lgbt também podem praticar sexo reprodutivo, mas é outra questão que se coloca: é pouca coisa praticar sexo por prazer? Por que algo prazeroso é considerado não natural?

Aqui tem-se um ponto central: são nossas ideologias que inspiram nossas práticas. Por exemplo: nós, povos indígenas, não queimamos as casas de reza alheias, não consideramos os deuses alheios como algo demoníaco, como espiritualidades que devem ser destruídas. Diante disso, não constitui um esforço respeitar as diversidades cosmogônicas, culturais. Mas quem acredita que apenas seu deus é verdadeiro, que somente sua fé é universal e que todos devem se submeter a ela poderá se sentir mais facilmente incomodado ao ver que nem todos acreditam em seus pressupostos. Da mesma forma, quem considera que existe apenas um tipo de família válido, apenas um tipo de sexualidade, poderá se sentir desconfortável em observar a multiplicidade. A colonização é um sistema de monoculturas, da fé, dos afetos, da sexualidade. Não admite a concomitância, vê a diversidade como algo a ser dizimado.

nós também somos o céu

Diante de tudo isso, talvez o maior desafio seja justamente que essas lógicas de monocultura atuem em nome do bem, do amor, da salvação, da caridade. E, em nome desse amor, agem de maneira discriminatória. Esse é um aprendizado muito bonito do livro em questão, o quanto é poderoso e nutritivo nos abrirmos a olhar e a perceber as pessoas que dizemos amar, não pelo que gostaríamos que fossem, mas pelo que são.

Essa é uma obra que, ao mesmo tempo que nomeia as violências, também faz questão de validar as resistências, as delicadezas, os pequenos gestos (invisíveis para tantos), que reafirmam silenciosa mas ruidosamente nossas identidades.

Eu dei início a este texto dizendo que queria ter lido algo assim quando era jovenzinha. Mas como o tempo circula e se movimenta, de alguma forma ler essa história hoje também consegue acolher os outros tempos que já vivi. Consegue dizer, nessa máquina do tempo que é a memória, que está tudo bem se apaixonar pela amiga, que não tinha nada de errado sentir o coração acelerando, os olhos brilhando e o sorriso abrindo quando eu a via. Que tenho, que temos o direito a viver nossos amores, nossos desencontros, do tamanho que eles são, sem o agigantamento das opressões, sem tanto medo de errar, de decepcionar.

Como me disse uma vez o mestre quilombola Nêgo Bispo: “tudo que é reto mente”; não há um único caminho, nem uma única verdade a ser seguida. Por isso, benditos sejam os desvios que nos fazem reencontrar com nós mesmas.

Já não quero ir pro céu nem pro inferno,
minha paixão é pela terra (que também sou).
Dizem que querem nos perdoar,
eu pergunto: de quê?
Dizem que querem nos salvar,
mas não estamos perdidos,
nunca estivemos
Quando as águas do rio me banham,
me banham de graça,
não me perdoam de nada,
não me consideram suja de pecado nenhum
O céu também é a terra,
também faz parte dela
O céu tá aqui pertinho
Ele chove em mim, em nós
Vejo daqui suas cores do dia, tarde, noite e madrugada
Quando as gotas do orvalho hidratam as folhas,
também há nelas um pouco de céu
Quando as flores e frutas crescem,
há nelas um pouco de chuva
No néctar que a borboleta toma há um pouco de nuvem
Em toda chuva,
um pouco de rio
Em todo rio,
um pouco de céu
O céu não é oposto da terra
Céu não é paraíso,
nem terra é inferno
Nem o inferno é aqui nem o paraíso é lá
Céu e terra são parte da mesma dança
que transcende tanto a salvação quanto a condenação
Não quero ir para o céu,
nós somos o céu.

Sobre a autora

Geni Núñez é ativista indígena guarani, escritora e psicóloga. É doutora pelo Programa Interdisciplinar em Ciências Humanas da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC, Florianópolis, SC), mestre em psicologia social e graduada no curso de psicologia pela mesma universidade. É co-assistente da Comissão Guarani Yvyrupa, membro da Articulação Brasileira de Indígenas Psicólogos(as) (ABIPSI), membro do Observatório da Kuñangue Aty Guasu Guarani Kaiowá e membro da Comissão de Direitos Humanos (CDH) e do Conselho Federal de Psicologia (CFP).