35ª Bienal de São Paulo
6 set a 10 dez 2023
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35ª Bienal de
São Paulo
6 set a 10 dez
2023
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Trinh T. Minh-ha, Reassemblage [Remontagem], 1982. Stills de filme, 16 mm
40’

De fora para dentro, de dentro para fora

Um objetivo constantemente reivindicado por quem “busca revelar uma sociedade para outra” é “capturar o ponto de vista do nativo” e “compreender a visão dele acerca do mundo dele”. Provocando muita discórdia, em termos de metodologia e de abordagem, entre especialistas nos campos da antropologia e do cinema etnográfico na última década, esse objetivo é também, de diferentes maneiras, caríssimo a muitas e a muitos de nós que consideramos nossa a missão de representar e de ser intérpretes fiéis de outras pessoas. A determinação de ver as coisas da perspectiva dos nativos constitui uma ideologia definida de verdade e autenticidade, e se encontra no centro de todas as discussões polêmicas sobre “realidade” e sua relação com “beleza” e “verdade”. Trazer à tona a questão de representar a Outra/o Outro é, portanto, retomar incessantemente a questão fundamental entre ciência e arte, documentário e ficção, universal e pessoal, objetividade e subjetividade, masculino e feminino, de-fora e de-dentro [outsider e insider].1

Frequentemente, o conhecimento sobre algo leva à ilusão de se ter o conhecimento

Há muitos anos, a antropóloga e cineasta estadunidense Zora Neale Hurston (1891-1960) escreveu sobre como lhe impressionava a ausência de curiosidade anglo-saxã acerca da vida interna e das emoções de pessoas negras e, de modo mais geral, sobre quaisquer povos não anglo-saxões. Apesar de hoje isso ainda persistir, há uma tendência de reafirmá-lo de outra forma, dizendo que impressiona mais a reivindicação geral de “especialistas” ocidentais que se interessam somente por esse aspecto da vida do Outro, e por quase nada além disso. O objetivo final agora é “desvendar a percepção do eu [self] do javanês, balinês ou marroquino”, supostamente mediante as definições que esses grupos têm de si. Às vezes, parece que as coisas mudaram drasticamente, quando, na verdade, podem apenas ter assumido aparências opostas, como costumam fazer, ao embaralhar as cartas e despistar as pessoas. A mudança que parte da exterioridade inconveniente para a interioridade intrusiva e a corrida pelos supostos valores ocultos de uma pessoa ou de uma cultura deram origem a uma forma de um legitimado voyeurismo (não reconhecido como tal) e a uma arrogância sutil – ou seja, a pretensão de enxergar ou dominar a mente dos outros, cujo conhecimento, supostamente, esses outros não detêm; e a necessidade de definir e, portanto, restringir, provendo-lhes assim um padrão de autoavaliação do qual eles necessariamente dependem. Conflitos psicológicos, e demais elementos idiossincráticos, tornam-se sinônimos de profundidade (palavra-chave para a metafísica ocidental), ao passo que a experiência interna é reduzida à subjetividade, são sentimentos e opiniões pessoais

“Como é ser racializada como eu?”2

Como é ser branco como você?

Para que um filme sobre a Outra/o Outro seja bom e sério, deve mostrar algum tipo de conflito, pois, com frequência, é assim que o Ocidente define identidades e diferenças. Para muitos cineastas que se orientam pela ciência, ver, ironicamente, ainda significa acreditar. Mostrar não é mostrar como posso vê-lo, como você pode me ver e como somos percebidos – o (nosso) encontro –, mas sim como você se vê e representa sua espécie (na melhor das hipóteses, por meio de conflitos), o Fato por si só. A autenticidade factual depende profundamente das palavras e dos testemunhos da Outra/do Outro. Para validar um trabalho, torna-se, portanto, mais importante provar ou evidenciar como essa Outra/esse Outro participou da composição de sua própria imagem; daí, por exemplo, a proeminência das séries de entrevistas e das talking-heads,3 estratégias de testemunho oral em práticas de documentário. Essa abordagem é frequentemente chamada de “dar voz”, embora essas “vozes” jamais formem, de fato, a Voz do filme, pois são utilizadas como artifícios de legitimação cuja autoridade aleatória, convenientemente dada e desvalorizada, serve, com frequência, para compensar a Ausência fílmica (ausência de imaginação ou de verossimilhança, por exemplo). O poder cria suas restrições, porque o Poderoso é também, necessariamente, definido por aquele que Não Tem Poder. Assim, o poder precisa ser compartilhado (“antropologia compartilhada” é uma noção que tentaram aplicar por aí) para que seu efeito possa continuar a circular; mas compartilhado só parcialmente, com muita cautela, e sob a condição de que seja dado, e não tomado. Um antropólogo famoso expressou a crise existente em seu campo de atuação quando escreveu: “Onde ficamos quando não podemos mais reivindicar algum tipo de proximidade psicológica ou identificação transcultural com nossos sujeitos?”4 Certamente o homem precisa manter vivo seu papel. Afinal, em todo erro há sempre alguma verdade.

[…] é uma questão de grau, não de oposição polar […] O confinamento a conceitos próximos-à-experiência deixa o etnógrafo inundado de imediatismo e enredado em vernáculo. O confinamento a conceitos distantes-da-experiência o deixa preso a abstrações e sufocado em jargões. A verdadeira e única questão […] no caso dos “nativos” – você não precisa ser um para conhecer um – é quais papéis os dois tipos de conceito desempenham na análise antropológica. 5

(por Clifford Geertz)

No entanto, “colocar-se na pele de outra pessoa” não é algo fácil. O risco que o homem teme para si e para os seus parceiros é o de “atravessar a montanha”. Para tanto, ele assume a tarefa de aconselhar e treinar seus seguidores para o distanciamento no campo, para que permaneçam no lado vitorioso. Nesse contexto, o ato de dar deve sempre ser determinado “com referência ao que, à luz do conhecimento e da experiência ocidental, temperados pelas considerações locais”, achamos que é melhor para eles.6 E, assim, garantir que absorveremos os segredos Deles/Delas, sem jamais entregar os Nossos.

O truque é não se envolver em correspondências espirituais internas com seus informantes. Por preferirem, como o restante de nós, considerar como deles as próprias almas, eles não ficarão muito interessados em se envolver em tais correspondências, de qualquer maneira. O truque é desvendar o que diabos eles pensam que estão fazendo. 7

(por Clifford Geertz)

A consequência natural desse raciocínio é o casamento arranjado entre “distante-da-experiência” e “próximo-à-experiência”, entre a objetividade científica e a subjetividade nativa, entre o input de alguém-de-fora e o output de alguém-de-dentro. Para atingir a noção mais íntima e oculta acerca do eu [self] da Outra/do Outro, o homem precisa contar com uma forma de interdependência (neo)colonial. E como, nesse modelo, compartilhar sempre significa dar pouco e obter mais do que um pouco, a necessidade de informantes acaba se transformando em uma necessidade de discípulos. Precisamos treinar pessoas-de-dentro para que possam se ocupar de Nossas preocupações e torná-las úteis formulando o tipo certo de Pergunta e proporcionando o tipo certo de Resposta. Portanto, a pessoa-de-dentro ideal é o sujeito psicologicamente detector-de-conflitos e resolvedor-de-problemas que representa a Outra/o Outro para o Mestre8 de maneira fidedigna, ou, mais especificamente, que conforta a relação eu-outro do Mestre em sua implementação de relações de poder, colhendo dados aproveitáveis, cuidando da própria vida/do próprio território, e ainda assim oferecendo a diferença que se espera dele.

O sistema do “Negro de estimação” 9

(por Zora Neale Hurston)

A todo homem branco deverá ser permitido ter um Negro de estimação. Sim, ele poderá pegar um homem negro para si para cuidar e estimar, e esse Negro será perfeito aos olhos dele. Nem o ódio entre as raças de homens nem as condições de discórdia nas cidades muradas farão esmorecer o orgulho e o prazer que sente por seu Negro.10

(por Zora Neale Hurston)

[…] quando tudo é descontado, prevalece o fato de que gente branca do Norte e do Sul promoveu Negros – geralmente sob a ideia de “representar o Negro” – com pouca consideração pelas habilidades da pessoa promovida, mas de forma alinhada ao sistema “de estimação”. 11

(por Zora Neale Hurston)

O apartheid impede qualquer contato entre pessoas de raças diferentes que possa minar a ideia de diferença essencial. 12

(por Vincent Crapanzano)

Uma perspectiva de alguém-de-dentro: a palavra mágica que contém o selo de aprovação. O que pode ser mais autenticamente outro que a outridade da Outra/do Outro em si? Contudo, cada fatia de bolo fornecida pelo Mestre traz consigo uma faca de dois gumes. Os africânderes dizem prontamente: “Você pode tirar o homem negro do mato, mas não pode tirar o mato do homem negro”. 

O lugar do nativo é sempre bem delimitado. O fazer fílmico culturalmente “correto” quase sempre insinua que os africanos mostram a África, os asiáticos, a Ásia, e os euro-estadunidenses… o Mundo. A outridade tem leis e interdições próprias. Portanto, se “você não pode tirar o mato do homem negro”, esse mato é constantemente fornecido de volta a ele, e, no fim das contas, é esse mato que ele deve transformar em seu território exclusivo. E ele pode fazer isso completamente ciente de que uma terra infértil está longe de ser um presente, pois, no desdobramento dos processos de desigualdades de poder, as mudanças exigem que as regras sejam reapropriadas para que o Mestre seja derrotado em seu próprio jogo. O doador pretensioso gosta de dar partindo da premissa de que está na posição de pegar de volta o que deu quando quiser, ou sempre que a pessoa que recebeu ousar ou vir a ultrapassar os limites de suas condições. No entanto, aquele que recebe não vê presente nenhum (consegue imaginar um presente que é tomado de quem o recebe?), mas apenas dívidas que, mesmo depois de pagas, permanecerão sendo sua propriedade, mesmo que o conceito de propriedade (de terras) lhe seja alheio, um conceito que se recusou a assimilar. Por meio das reações e expectativas do público a respeito de seus trabalhos, cineastas não brancas/os13 são frequentemente informadas/os e lembradas/os dos limites territoriais em que devem permanecer. Uma pessoa-de-dentro pode falar com autoridade sobre sua cultura e é considerada uma fonte de autoridade nesse assunto – não necessariamente como cineasta, mas meramente como alguém-de-dentro. Esse ato automático e arbitrário de imbuir a pessoa-de-dentro de conhecimento legitimado sobre seu patrimônio cultural e seu ambiente apenas exerce seu poder quando se trata de uma questão de validação de poder. É uma inversão paradoxal da mente colonial: o que Alguém-de-fora espera de Alguém-de-dentro é, de fato, a projeção de um sujeito onisciente que esse Alguém-de-fora costuma atribuir a si e à sua espécie. Nessa relação eu-outro não reconhecida, no entanto, o Outro/a Outra sempre permaneceria à sombra do eu, portanto não-realmente-não-exatamente “onisciente”. Uma pessoa branca que realiza filmes sobre o povo Goba do Zambeze ou sobre o povo Tasaday da floresta tropical das Filipinas não parece surpreender ninguém, mas uma pessoa do Terceiro Mundo que faz filmes sobre outros povos do Terceiro Mundo jamais deixará de ser passível de questionamentos para muitos. Imediatamente, surge a questão da escolha do assunto. Às vezes, por curiosidade, e, na maioria das vezes, por hostilidade. O casamento não se consuma, pois o casal não é mais “de-fora-de-dentro” [outside-inside] (objetivo versus subjetivo), mas algo entre “de-dentro-de-dentro” (subjetivo no que já é designado como subjetivo) e “de-fora-de-fora” (objetivo no que já é reivindicado como objetivo). Sem conflito real.

Diferença, sim, mas diferença
Dentro das fronteiras de suas terras, eles dizem
Domínio branco e a política de divisões étnicas

Quaisquer tentativas de desfocar a linha divisória entre alguém-de-fora e alguém-de-dentro provocariam – com razão – ansiedade, senão raiva. Nesse caso, direitos territoriais não estão sendo respeitados. A violação de limites sempre levou ao deslocamento, pois as zonas entre-lugares são terrenos movediços sobre os quais caminham pessoas (duplamente) exiladas. Não Você/ não como Você. A subjetividade de Alguém-de-dentro (compreendida como horizonte afetivo limitado – o pessoal) é a mesma área sobre a qual o Alguém-de-fora objetivo (compreendido como horizonte imparcial ilimitado – o universal) não consegue reivindicar autoridade plena, mas graças à qual ele segue validando seu papel indispensável, reivindicando agora o que lhe é devido por meio de um conhecimento científico “interpretativo”, mas ainda um conhecimento científico totalizante.

A antropologia é a ciência da cultura vista de fora.14

(por Claude Levi-Strauss)

Portanto, se nativos estudassem a si mesmos, dir-se-ia que estariam produzindo história ou filologia, não antropologia.15

(por Claude Levi-Strauss)

[…] somente um representante de nossa civilização pode, de maneira detalhadamente adequada, documentar a diferença e ajudar a criar uma ideia do primitivo que não seria construída pelos próprios primitivos.16

(por Stanley Diamond)

A interdependência não pode ser reduzida a mera questão de escravização mútua. Ela também consiste na criação de um território que não pertença a ninguém, nem mesmo a seu “criador”. A outridade torna-se uma diferença crítica que empodera quando não é dada, mas sim recriada. Definida com os critérios recém-formados da Outra/do Outro. O cinema imperfeito é subversivo, não porque a ciência contribua para a purificação da arte, ao “permitir que nos libertemos de tantos filmes fraudulentos, ocultos sob o que tem sido chamado de mundo da poesia”;17 não porque, “quanto mais granulada [a imagem], melhor a política”; tampouco porque uma tomada trêmula, desfocada e mal enquadrada seja mais verdadeira, sincera e autêntica do que uma tomada considerada “bonita” e tecnicamente perfeita (tremer a câmera também pode ser uma técnica); mas sim, eu diria, porque não existe imperfeição (absoluta), pois a perfeição só pode se construir por meio da existência de sua Outra imperfeita. Em outras palavras, a perfeição é produzida, e não meramente dada. Os valores que mantêm o conjunto dominante de critérios no poder são simplesmente ineficazes em uma estrutura na qual não são mais obedecidos.

Pessoas não ocidentais podem ou não querer realizar filmes sobre suas sociedades. Seja qual for sua escolha, a questão seguramente não é estabelecer uma oposição às práticas dominantes, pois “oposição” no contexto unidimensional das sociedades modernas, de modo geral, significa fazer o jogo do Mestre. Durante anos, Eles têm dito, com um cuidado muito paternalista: “África para os africanos”; “Nós deveríamos incentivar as pessoas do Terceiro Mundo a fazer filmes sobre seu próprio povo”; “Nós gostaríamos de ver asiáticos na perspectiva dos asiáticos”; ou Nós queremos “ensinar pessoas de uma cultura diferente da nossa a fazer filmes que retratem a cultura delas e elas mesmas da forma que elas achem melhor” (para que Nós possamos coletar dados sobre o processo fílmico etnográfico indígena e mostrar o povo Navajo pelos olhos do povo Navajo aos nossos colegas da área).18 Novamente, isso é o mesmo que afirmar que uma perspectiva não branca é desejável porque ajudaria a preencher um vazio que os brancos agora estão dispostos a deixar mais ou menos vazio para diminuir a pressão crítica e proporcionar a ilusão de certa incompletude que necessita da contribuição da pessoa nativa para ser mais completa, mas que, em última instância, depende da autoridade branca para alcançar qualquer tipo de completude real. Essa missão caridosa ainda é considerada correta por muitos, e, apesar das diversas mudanças de aparência pelas quais passou ao longo dos anos, a imagem do branco colonial salvador parece mais perniciosa do que nunca, pois agora opera por meio do consentimento. A antropologia indígena possibilita que a antropologia branca continue a antropologizar o Homem. 

A antropologia é a atual base de cada discurso pronunciado por sobre a cabeça da pessoa nativa.

Os “retratos” de um grupo produzidos pelo observador como alguém-de-fora e pelo observador como alguém-de-dentro serão diferentes, assim como serão relevantes em contextos distintos. A consciência desse fato subjaz ao apelo recente: “Tem que ser [uma pessoa nativa] para entender [uma pessoa nativa]”.19

(por Diane Lewis)

A questão não é simplesmente “corrigir” as imagens que brancos têm de não brancos, nem reagir à mente territorial colonial simplesmente revertendo a situação e estabelecendo uma oposição que, na melhor das hipóteses, espelhará as atividades e as preocupações do Mestre. (Há pouco tempo, por exemplo, alguns antropólogos franceses falaram em treinar e trazer antropólogos-discípulos do continente africano para estudar aspectos culturais de vilarejos remotos na França. Mais uma vez, deixe que Eles – a quem Nós ensinamos – Nos estudem, pois isso também é informação, e é assim que a roda antropologizante se mantém girando.)

Mas, em vez disso, a questão é rastrear e expor a Voz do Poder e da Censura, quando e onde ela surja. A diferença essencial possibilita a seus adeptos se apoiarem com tranquilidade em sua gama de noções fixas. Qualquer mutação na identidade, na essência, na regularidade e até mesmo no espaço físico representa um problema, senão uma ameaça, em termos de classificação e de controle. Se você não consegue localizar a Outra/o Outro, como poderá localizar a si mesmo? 

O senso de eu [self] de uma pessoa é sempre mediado pela imagem que ela tem do Outro/da Outra. (Por vezes, me perguntei se um conhecimento superficial acerca do Outro/ da Outra, em termos de estereótipo, não é uma maneira de preservar uma imagem superficial de si mesmo.)20

(por Vincent Crapanzano)

Além disso, onde termina a linha divisória entre alguém-de-fora e alguém-de-dentro? Como ela deve ser definida? Pela cor da pele (nenhuma pessoa Negra deve fazer filmes sobre pessoas Amarelas)? Pela língua (somente o povo Fulani pode falar sobre o povo Fulani, pessoas do povo Bassari são estrangeiras aqui)? Por nação (somente vietnamitas podem produzir obras sobre o Vietnã)? Por geografia (na configuração Norte-Sul, o Oriente é Oriente e não pode se encontrar com o Ocidente)? Ou por afinidade política (Terceiro Mundo [fala] sobre Terceiro Mundo em oposição a Primeiro e Segundo Mundos)? E quanto às pessoas de identidades hifenizadas e realidades híbridas? (Vale a pena mencionar uma reportagem em uma edição da revista Time [1987], intitulada “A Crazy Game of Musical Chairs” [Louca dança das cadeiras]. Nessa reportagem breve e concisa, chama-se a atenção para o fato de que as pessoas na África do Sul – que são classificadas por raça e colocadas em uma das nove categorias raciais que determinam onde podem viver e onde podem trabalhar – podem ter sua classificação alterada se puderem provar que foram inseridas no grupo errado. Assim, em um anúncio de reclassificações raciais feito pelo ministro de Assuntos Internos,21 ficamos sabendo que:

nove brancos se tornaram coloured, 22 506 coloured se tornaram brancos, dois brancos se tornaram malaios, 14 malaios se tornaram brancos […] 40 coloured se tornaram negros, 666 negros se tornaram coloured, 87 coloured se tornaram indianos, 67 indianos se tornaram coloured, 26 coloured se tornaram malaios, 50 malaios se tornaram indianos, 61 indianos se tornaram malaios […]

E a lista continua. No entanto, diz o ministro, “nenhum negro se candidatou para se tornar branco e nenhum branco se tornou negro”.)23

No momento em que a pessoa-de-dentro sai de dentro, ela não é mais uma mera pessoa-de-dentro (e vice-versa). Ela necessariamente olha de fora para dentro e de dentro para fora, simultaneamente. Como a pessoa-de-fora, ela se afasta e registra o que nunca soa para ela-a-pessoa-de-dentro24 como algo que valha a pena ou que precise ser registrado. Mas, diferentemente da pessoa-de-fora, ela também recorre a estratégias não explicativas e não totalizantes que suspendem o significado e resistem à conclusão. (Isso geralmente é considerado por pessoas-de-fora como estratégias de ocultação e de revelação parciais, destinadas a preservar segredos que só devem ser transmitidos às pessoas iniciadas). Ela se recusa a se reduzir a Outra e a reduzir suas reflexões ao mero raciocínio objetivo de pessoa-de-fora ou ao sentimento subjetivo de pessoa- de-dentro. Ela sabe, como a antropóloga-de-dentro Zora Neale Hurston sabia, que não é de-fora como o estrangeiro de-fora. Ela sabe que é diferente mesmo quando é Ele. Não exatamente a Mesma, nem exatamente Outra, ela se encontra naquele limiar indeterminado em que constantemente entra e do qual constantemente sai. Subvertendo a oposição dentro/fora, a intervenção dela é tanto a intervenção de uma pessoa-de-dentro fraudulenta quanto a de uma pessoa-de-fora fraudulenta. Ela é essa Outra/Mesma Inapropriada que se move sempre com pelo menos dois/quatro gestos: o de afirmar “sou como você” enquanto persiste em sua diferença; e o de lembrar a si mesma “sou diferente”, enquanto desestabiliza toda definição de outridade a que tenha chegado.

É arrepiante pensar – saber que, por qualquer ação minha, receberei o dobro de elogios ou o dobro de culpa. É muito inquietante estar no centro do palco nacional, diante de um público que não sabe se ri ou se chora.25

(por Zora Neale Hurston)

Os coloured são muito emotivos, e não se pode confiar nos Bantos. Uma vez, um fazendeiro daqui perguntou a um capataz Banto, “Johnny, você daria um tiro em mim?” “Não, chefia, não daria um tiro no senhor”, disse Johnny. “Eu iria na casa do vizinho e daria um tiro no chefe de lá. E o encarregado dele viria atirar no senhor.26

(por Dora Herzog)

A teoria por trás de nossas táticas: “O homem branco está sempre tentando saber demais da vida de alguém. Tudo bem. Eu vou botar um negócio na porta da minha mente pra ele brincar e mexer. Ele vai poder ler minhas palavras, mas não vai ler minha mente, não. Eu vou botar esse brinquedo na mão dele, ele vai pegar e ir embora. Aí eu vou dizer meus dizeres e cantar meus cantares”.27

(por Zora Neale Hurston)

[…] a única etnologia possível é aquela que estuda o comportamento antropofágico do homem Branco.28

(por Stanislas Spero Adotevi)

Quer ela vire o lado de dentro para fora ou o lado de fora para dentro, ela é, como as duas faces de uma moeda, a mesma pessoa-de-dentro/de-fora impura, duas-em-uma. Pois dificilmente há uma parte de dentro essencial que possa ser representada de forma homogênea por todas as pessoas-de-dentro; uma pessoa-de-dentro autêntica aqui dentro, uma realidade absoluta lá fora, ou uma representante não corrompida que não possa ser questionada por outra representante não corrompida.

A razão mais importante pela qual Negros não fazem mais a respeito da falsa “representação” pela lógica de estimação é que eles sabem por experiência que essa lógica está enraizada demais para ser mudada. Quem emprega essa lógica tem seus motivos, pessoais ou políticos. E sempre pode apontar para o beneficiário e dizer: “Vejam, Negros, vocês foram bem tratados. Não veem que eu dei um emprego importante a um membro de seu grupo?” As autoridades brancas presumem que o elemento Negro está satisfeito e não sabem o que fazer quando, mais tarde, descobrem que um grupo tão grande de Negros as acusa de indiferença e de trapaça. O amigo branco dos Negros resmunga sobre ingratidão e decide que é simplesmente impossível entender os Negros… são como crianças.29

(por Zora Neale Hurston)

No contexto dessa Outra Inapropriada, são pouco relevantes perguntas como “Quão leal, como representante de seu povo, essa pessoa é?” (cineasta como alguém-de-dentro) ou “Quão autêntica é sua representação da cultura observada?” (cineasta como alguém-de-fora). Quando a magia das essências deixa de impressionar e intimidar, não há mais uma posição de autoridade com base na qual se possa julgar definitivamente o valor de verossimilhança da representação. Na primeira pergunta, o sujeito questionador, mesmo que seja alguém-de-dentro, não é mais autêntico e não tem mais autoridade sobre o assunto do que o sujeito a quem as perguntas dizem respeito. Isso não quer dizer que o “eu” histórico possa ser obscurecido ou ignorado e que a diferenciação não possa ser feita, mas esse “eu” não é unitário, a cultura nunca foi monolítica, e mais ou menos é sempre mais ou menos em relação a um sujeito julgador. As diferenças não existem apenas entre pessoa-de-fora e pessoa-de-dentro – duas entidades –, elas também operam dentro da pessoa-de-fora ou pessoa-de-dentro – uma entidade só. Isso nos leva à segunda pergunta, na qual a pessoa cineasta é alguém-de-fora. Enquanto a pessoa cineasta adotar uma atitude positivista e optar por ignorar as intersubjetividades e as realidades envolvidas, a verdade factual continuará sendo o critério dominante de avaliação, e a questão de saber se o trabalho dela representa com sucesso a realidade que reivindica continuará a exercer seu poder. Quanto mais a representação se apoiar na verossimilhança, mais estará sujeita à verificação normativa. Para a Outra Inapropriada, entretanto, as perguntas previamente mencionadas parecem inadequadas; o critério de autenticidade perde sua pertinência. É como perguntar a alguém ateísta: “Quão fiéis às palavras de Deus são tuas palavras?” (com o entendimento de que a pessoa ateísta não se opõe, mas é in-diferente à pessoa crente). Ela [a Outra], que sabe que não pode falar deles sem falar de si mesma, nem falar da história sem envolver a própria história, também sabe que não pode fazer um gesto sem ativar o movimento de ir e vir da vida. A subjetividade que opera no contexto dessa Outra Inapropriada dificilmente pode ser submetida ao velho paradigma subjetividade/ objetividade. A consciência política aguda do sujeito não pode ser reduzida a uma questão de autocrítica que visa o autoaperfeiçoamento ou o autoelogio com o intuito de obter mais autoconfiança. Tal diferenciação é útil, pois a compreensão da subjetividade como “ciência do sujeito” faz parecer absurdo o medo da autoabsorção etnográfica. A consciência dos limites em que se opera não precisa levar a nenhum tipo de indulgência em parcialidade pessoal, nem à conclusão limitada de que é impossível entender qualquer coisa sobre outros povos, já que a diferença é questão de “essência”. Ao se recusar a naturalizar o “eu”, a subjetividade revela o mito do núcleo essencial, da espontaneidade e da profundidade como visão interior. Portanto, a subjetividade não consiste apenas em falar sobre si, seja de maneira indulgente ou crítica. Muitas das pessoas que concordam com a necessidade de autorreflexão e reflexão na produção de filmes consideram ser suficiente mostrarem-se operando na tela, ou, ocasionalmente, indicar o próprio papel no filme e sugerir alguma melhoria futura para convencer o público da própria honestidade, pagando assim as dívidas com o pensamento liberal. Por isso, há agora um crescente número de filmes em que o público vê o narrador narrando, o cineasta filmando ou dirigindo e, como era de se esperar, as pessoas nativas – a quem se entrega, temporariamente, uma pequena câmera (geralmente uma super-8) ou um gravador – supostamente contribuindo para o processo de produção. Nesse caso, o que é apresentado como autorreflexão não é mais do que uma pequena fração – a mais convenientemente visível – das muitas possibilidades de demonstrar o trabalho da ideologia na qual pode se desdobrar essa “ciência do sujeito”. Em resumo, o que está em jogo é uma prática de subjetividade que ainda desconhece sua própria natureza constitutiva (por isso a dificuldade de extrapolar o par simplista de subjetividade/objetividade); desconhece seu papel contínuo na produção de sentido (como se as coisas pudessem “fazer sentido” por si mesmas, de modo que a função de quem as interpreta consiste somente em escolher entre as muitas leituras possíveis); desconhece a representação como representação (as inter-realidades culturais, sexuais e políticas envolvidas na feitura: da pessoa cineasta como sujeito; do sujeito filmado; e do aparato cinematográfico); e, por fim, desconhece a Outra Inapropriada dentro de cada “eu”.

Minha certeza de ser excluído por pessoas Negras um dia não é forte o suficiente para me impedir de lutar ao lado delas.30

(por Breyten Breytenbach)

O que, de fato, representa um desafio é a organização que consiste em uma associação íntima ou aliança entre negro, branco, indiano, coloured. Um grupo assim constitui uma negação da teoria de separação africânder, da lógica medieval de clã deles.31

(por Ezekiel Mphahlele)

[…] os modos estereotipados do comportamento japonês, de quietude, obediência e conformidade chocaram-se com as expectativas brancas de ser uma pensadora motivada, independente e ambiciosa. Quando estava com brancos, me preocupava se estava falando alto o suficiente; quando estava com pessoas japonesas, me preocupava se estava falando alto demais.32

(por Joanne Harumi Sechi)

Andando bem ereta e falando de maneira inaudível, tentei adquirir uma postura feminina-estadunidense. A comunicação chinesa era alta, pública. Somente pessoas doentes precisavam sussurrar.33

(por Maxine Hong Kingston)

Quando escuto estudantes de minhas turmas dizerem “não somos contra gente iraniana que cuida da própria vida. Só somos contra gente iraniana ingrata que abusa de nossa hospitalidade fazendo protestos e falando mal de nosso governo”, eu sei que estão falando de mim.34

(por Mitsuye Yamada)

Publicado originalmente em J. Pines e P. Willemen (orgs.), Questions of Third Cinema.

Londres: British Film Institute, 1988. [N.E.]

    • Ao longo deste texto, serão utilizadas as variações pessoa-de-dentro / alguém-de-dentro / de-dentro como tradução para insider, e pessoa-de-fora / alguém-de-fora / de-fora para remeter ao termo em inglês outsider. [N.T.]
    • Em inglês, “How It Feels To Be Colored Me”, título original de um artigo de Zora Neale Hurston. Constitui provavelmente uma resposta ao que ela sentia que os brancos de seu
    • convívio sempre queriam lhe perguntar. In Alice Walker (org.), I Love Myself When I Am Laughing. Old Westbury, NY: The Feminist Press, 1979, pp. 152-155.
    • Em português, literalmente, “cabeças-falantes”. É um estilo de vídeo em que uma pessoa é filmada da cintura para cima, encarando a câmera. A estratégia causa a impressão de que a pessoa filmada está se dirigindo à pessoa que assiste a ela. [N.T.]
    • Clifford Geertz, Local Knowledge. Nova York: Basic Books, 1983, p. 56.
    • Ibid., p. 57.
    • Earl of Evelyn Baring Cromer, Political and Literary Essays, 1908-1913. (1913) Freeport, NY: Books for Library Press, 1969. 
    • Clifford Geertz, op. cit., p. 58.
    • “Master”, no original, se refere ao mestre antropólogo, cientista, e não ao senhor colonial (também “master” no inglês). [N.E.]
    • No original, “The ‘Pet Negro’ System”. [N.T.]
    • Zora Neale Hurston, “How It Feels To Be Colored Me”, op. cit., p. 156.
    • Ibid., p. 160.
    • Vincent Crapanzano, “A Reporter at Large”, The New Yorker, 18 mar. 1985.
    • No original, non-white. [N.T.]
    • Claude Levi-Strauss, “Anthropology: Its Achievements and Future”, Current Anthropology, n. 7, 1966, p. 126.
    • Ibid.
    • Stanley Diamond, “A Revolutionary Discipline”, Current Anthropology, n. 5, 1964, p. 433.
    • Julio García Espinosa, “For an Imperfect Cinema”, in Michael Chanan (org.), Twenty-five Years of the New Latin American Cinema. Londres: BF1/Channel 4 Television, 1983, pp. 28-33.
    • Ver Sol Worth e John Adair, Through Navajo Eyes. Bloomington: Indiana University Press, 1972.
    • Diane Lewis, “Anthropology and Colonialism”, Current Anthropology, n. 14, 1973, pp. 586-587.
    • Vincent Crapanzano, op. cit.
    • Ministry of Home Affairs. [N.T.]
    • Decidimos manter o termo coloured, como em seu contexto específico, para evitar comparações com o contexto brasileiro e não atribuir termos que não existem aqui. Para maior aprofundamento no tema, ver, por exemplo, Mohamed Adhikari (org.), Burned by Race: Coloured Identities in South Africa. Cidade do Cabo: UCT Press, 2013. 
    • Ibid.
    • Her-the insider, no original. [N.T.]
    • Zora Neale Hurston, op. cit., p. 153.
    • Dora Herzog, “An Afrikaner”, apud Vincent Crapanzano, op. cit., p. 93.
    • Zora Neale Hurston, op. cit., p. 83.
    • Stanislas Spero Adotevi, Negritude et negrologue. Paris: Union Generale d’Editions, 1972, p. 182.
    • Zora Neale Hurston, op. cit., p. 161.
    • Do artigo do escritor sul-africano Breyten Breytenbach, “L’Aveuglement des Afrikaners”, Le Nouvel Observateur, 20-26 jun.1986, p. 48.
    • Ezekiel Mphahlele, The African Image (1962). Nova York: Praeger, 1966, p. 73.
    • Joanne Harumi Sechi, “Being Japanese-American Doesn’t Mean ‘Made in Japan’”, in Dexter Fisher (org.), The Third Woman. Boston: Houghton Mifflin, 1980, p. 446.
    • Maxine Hong Kingston, The Woman Warrior. Nova York: Vintage Books, 1977.
    • Mitsuye Yamada, “Asian Pacific American Women and Feminism”, in Cherrie Moraga e Gloria Anzaldúa, This Bridge Called My Back. Watertown, Mass.: Persephone Press, 1981, p.75.

Sobre a autora

Trinh T. Minh-ha é cineasta, escritora, compositora e professora. Leciona cursos com enfoque em teoria feminista, teoria do cinema e políticas culturais. Nascida no Vietnã, Trinh realizou filmes em diversos territórios, subvertendo convenções tradicionalmente empregadas em documentários etnográficos. 

Reassemblage [Remontagem] (1982) apresenta sua conhecida formulação speak nearby [falar perto], diferenciando-se do speak about [falar sobre]. Ao filmar o cotidiano de uma zona rural no Senegal, a voz off da diretora volta-se à sua prática cinematográfica e tenta desmantelar a exotização comum às epistemologias coloniais. Falar perto é reconhecer a lacuna. Ao renunciar à explicação da Outra/do Outro, a cineasta assume que não há solução a ser apontada: “Estou olhando em círculo, e um círculo de olhares” (do filme Reassemblage, 1982, 36m55s).

No ensaio “De fora para dentro, de dentro para fora” (1988), Trinh também discute os jogos de poder e de legitimação que ocorrem quando perspectivas não brancas e identidades hifenizadas estão em circulação. Alertando sobre as armadilhas das hierarquias de conhecimento, ela questiona quem define o que é chamado de autêntico e as produções que acreditam estar dando a voz. Para a autora, a liberdade de se livrar de uma posição de autoridade surge como um campo de possibilidades. Quem era considerada a Outra sabe que “não pode falar deles sem falar de si mesma, nem falar da história sem envolver a própria história, também sabe que não pode fazer um gesto sem ativar o movimento de ir e vir da vida”.