35ª Bienal de São Paulo
6 set a 10 dez 2023
Entrada gratuita
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35ª Bienal de
São Paulo
6 set a 10 dez
2023
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Correspondências entre vozes, uma carta para seguir conversas

caminhar sem perceber
levar uma vida só
não se pode escolher
aquilo que dá o nó
de todos os desejos
impossível viver só
não se deixe implicar
busque tornar possível
a proposta de rimar
ler um verso sensível
poderás compreender
o que é impossível1

Rosana Paulino, da série Jatobá, 2019 Aquarela, grafite sobre tela 65 × 50 cm Cortesia da artista e Mendes Wood DM, São Paulo Foto: Isabella Matheus

Voltei!

Continuo sendo…2, e hoje sou feita de mais vozes.3 Mas não sou maior que antes. Dos desejos que me criaram, o de ser grande não é o que mais me instiga. Prefiro continuar fragmentada, ser muitas partes juntas e poder existir apenas como encontro.

E, em grande parte, é sobre isso que gostaria de falar com você nesta mensagem. As vozes que me constituem carregam a memória de cantos, risos e prosas dos vários encontros que aconteceram desde o primeiro movimento. E, como você já sabe, páginas escritas nem sempre dão conta do vivido, daquilo que se inscreve no tempo e no corpo. Mas, aqui, minhas vozes vão contar algo sobre os encontros que tornam este movimento − assim como o anterior e aquele que ainda virá − uma realidade, e você também poderá ver registros e reflexões desses momentos nas Encruzilhadas.4

No final de abril colocamos nosso bloco na rua. Contamos com a presença de uma abre-alas de respeito − Leda Maria Martins. Ela e Thiago Vinicius de Paula da Silva dançaram e grafaram no tempo os saberes corporificados das pessoas presentes no Pavilhão da Bienal.

Trem sujo da Leopoldina,
Correndo correndo,
Parece dizer:
Tem gente com fome,
Tem gente com fome,
Tem gente com fome…

Thiago deu corpo e voz à palavra de Solano Trindade, poeta que dá nome à Agência Popular que trabalha para que as pessoas que habitam a periferia não existam apenas para servir à cidade, mas sejam reconhecidas como um corpo de direitos e desejos.

Vamos tentando criar as formas circulares porque o espaço em si não as cria. […] O “eu” não é o principal, o principal é sempre ‘nós’. Não um ‘nós’ abstrato. Um “nós” com quem danço, rio e me alimento.5

Assim falou Leda, que, em vez de trazer uma resposta a nossas inquietações sobre tempo, memória e ancestralidade, preferiu riscar o salão, promovendo um encontro entre a materialidade proposta pelo arquiteto Oscar Niemeyer (1907-2012) e a imaterialidade do canto ecoado pelo coro de pessoas que preencheu o vão central do Pavilhão da Bienal.

Seguimos no sábado, 13 de maio de 2023, quando mais vozes chegam para dar corpo à coreografia das ações de difusão da 35ª Bienal.  Performamos a re/estreia dos encontros presenciais no Pavilhão da Bienal com um desejo: abandonar as formas, romper com métodos e viver a experiência de trocas, de imaginações e possibilidades, a partir da e com a publicação educativa. Uma roda, três pandeiros e o encontro com artistas e pensadoras que colaboraram com o enredo do primeiro movimento. Seguimos também com ações on-line, contando com professoras, educadoras, pesquisadoras e pessoas interessadas de todas as regiões do país, além de participantes de antigos carnavais, que compuseram equipes de mediação em outras Bienais, e muitos que se somaram à roda agora. Cada encontro transformou-se em uma encruzilhada de pessoas, corpos, vozes e saberes, de Leda a Rosana Paulino.

A apoteose de uma escola de samba geralmente é vista em seu desfile, mas queremos contar um pouco sobre o que precede a festa. O barracão é o principal espaço de fabulação das agremiações carnavalescas. É um espaço no qual se constroem a coletividade, laços de solidariedade e infinitas possibilidades; nós o reconhecemos, portanto, como um espaço de educação. 

“Cinza-chumbo.” Essa era a cor da tarde em que a equipe de Educação da Bienal visitou o ateliê de Rosana Paulino. Chovia havia dias, e notícias de pessoas mortas e desaparecidas no litoral norte de São Paulo ainda chegavam. Naquele momento, as “águas de março” não inspiravam nenhum lirismo, nenhuma contemplação. 

Pirituba com chuva ou sem chuva é assim: se vacilar é o fim!6

Rosana não precisou de versos de seus vizinhos RZO para lembrar que as nuvens carregadas traziam más notícias. E não era apenas o volume da chuva, que persistiu e derrubou a energia elétrica. Para a artista, os temporais daquele mês de março eram também recados da natureza, que sinalizam sua destruição e a morte em nome do progresso. As grandes obras do homem branco no mundo.

Voltávamos a Pirituba em um sábado à tarde quando começamos a especular com mais força sobre aquilo que ainda não conhecíamos mas chamávamos de segundo movimento. Um beija-flor apareceu para lembrar que Rosana Paulino tinha sido homenageada no ano anterior pela escola de samba Beija-flor de Nilópolis, representando as artes visuais em um carro alegórico com outras personalidades negras. As fantasias da ala das baianas traziam patuás inspirados nos trabalhos artísticos de Paulino, reconhecimento que também vinha de sua presença na Bienal de Veneza e agora chega à Bienal de São Paulo, em que Rosana vai exibir seus trabalhos pela primeira vez.

Na comida de santo ninguém põe a mão, ela é sagrada, meu pai, ela é sagrada!7

Dessa vez, o dia estava ensolarado, e, apesar de ser sábado, vivemos um almoço de domingo, em um quintal, temperado pelo cheiro da moqueca preparada por Pai Alcides8 e embalado pelo som de pássaros, carros e do trem que liga as zonas leste, sul e norte da cidade de São Paulo.

Só nas estações,
Quando vai parando,
Lentamente,
Começa a dizer:
Se tem gente com fome,
Dai de comer…
Se tem gente com fome,
Dai de comer…
Mas o freio de ar,
Todo autoritário,
Manda o trem calar:
Psiuuuuu…9

Rosana Paulino e Sueli Carneiro nos convidaram para seguir com o atrevimento de sonhar, em roda, no encontro coletivo, esgarçando as im/possibilidades de educação como uma dança de fuga ao pé de árvores.

Um quintal cercado de plantas que alimentam, curam e, como dirá Rosana, são “medicina”. Assim como outros espaços, se faz por e com a presença visível ou não de seres além-de-humanes.10 Quintal que se prepara para gestar o Instituto Rosana Paulino e, como os barracões das escolas de samba, também é espaço de educação.

As conversas com Rosana Paulino e Sueli Carneiro, a reflexão de Trinh T. Minh-ha sobre a representação da Outra/do Outro, o debate sobre instituições totais mobilizado por Kapwani Kiwanga, a prática artística de Denilson Baniwa fundamentada nos povos originários, a imaginação radical da Sauna lésbica… Esses são alguns componentes desse enredo do segundo movimento, que invariavelmente nos levou a um espaço muito caro.

Tornou-se impossível não coreografar com o espaço da escola, e, quando escolhemos a escola, nos somamos a uma luta por um direito adquirido, que é o acesso à educação pública, gratuita, de qualidade e que tenha a diversidade como eixo estruturante.

Assim, convidamos professoras e educadoras parceiras para compor a publicação, valorizando a importância das relações institucionais que mantemos, entre outras, com o Centro Paula Souza, com as diretorias de ensino da Secretaria Estadual de Educação e com a Secretaria Municipal de Educação, especialmente a Divisão de Ensino Fundamental e Médio, o Núcleo de Gênero e Diversidade e o Núcleo de Educação para as Relações Étnico-Raciais. Diante das provocações em torno da educação que Rosana Paulino e Sueli Carneiro generosamente nos ofertaram, decidimos conversar com as educadoras, entender as violências presentes e como afetam toda a comunidade escolar. Nesse encontro, contamos também com um trecho do livro The Lesbiana’s Guide to Catholic School [Guia lésbico para escolas católicas], de Sonora Reyes, aqui comentado pela psicóloga e pesquisadora Geni Núñez em “Desviar para se encontrar”. Geni toma o livro como um convite a pessoas de quaisquer orientações sexuais para que repensem seu fazer e seu lugar no mundo. 

Nosso desejo era ouvir as educadoras, e assim transmutamos suas palavras em frases que, por fim, compuseram os cartazes lambe-lambe presentes neste movimento. A oficina compõe um dos gestos11 da publicação. Os lambe-lambes são só o começo e podem ser aplicados em muitas outras escolas a que essa voz que fala e escreve pode chegar.

Sabemos que ao longo da história não foram poucos os ataques à educação pública e aos corpos que a compõem. Mulheres, pessoas negras, dissidentes sexuais, pessoas com deficiência e povos indígenas encontram na escola um espaço que, muitas vezes, reforça a vivência de uma cidadania incompleta. Por outro lado, esses grupos se assumem como seres sociais e históricos, e a escola precisa acompanhar esse movimento, repensando as condições materiais e simbólicas que o espaço escolar oferece.

Aqui você também encontrará vozes que se tornaram gestos. Criamos uma audiodescrição poética, com a Mais Diferenças.12 Partimos do encontro entre duas mulheres e artistas que, apesar das distâncias territoriais e temporais, tiveram a vida atravessada por violências históricas e dialogam por meio de suas poéticas. Imaginamos o encontro de Aurora Cursino dos Santos com Ceija Stojka, pensando em compartilhar o resultado com pessoas videntes e não videntes.

Outro encontro foi registrado nas películas da cineasta Sarah Maldoror (1929-2020), ao visitar o ateliê de seu amigo, o artista cubano Wifredo Lam (1902-1982). Incluímos uma sequência de fotogramas do filme Wifredo Lam com reproduções dos desenhos do artista para o livro Fata Morgana e convidamos a crítica e curadora de cinema Kênia Freitas para um exercício de fabulação em torno desse encontro.

E mais pessoas, também com trajetórias diversas e nascidas de diferentes diásporas, chegarão para coreografar o im/possível com base no dissenso, para viver o inesperado do que virá a ser a 35ª Bienal,13 compondo a equipe de mediação. Tomando a encruzilhada como metodologia, nosso desejo é que as educadoras tensionem modos diversos do fazer poético/pedagógico e que, na dança com mais de uma episteme, surjam gestos que ainda desconhecemos. 

Eu sou…, já fui… e, ainda, estou sendo… De nascedouros possíveis, atravessando o rosa-azul, imaginando se existisse uma Sauna lésbica, incluo um novo aceno, desejando um até logo. Desfruto do imprevisível do que se dará nestas páginas, vislumbrando encontros na exposição para assim sonhar, compor um novo enredo e voltar a brincar nos terreiros.14

 

assessore/as responsáveis pela formação: André Leitão, Bruna de Jesus, Danilo Pera, Giovanna Endrigo, Regiane Ishii, Renato Lopes e Tailicie Nascimento

    • Versos inspirados na literatura de cordel, criados com base em respostas da equipe de Educação às perguntas lançadas pelo coletivo curatorial da 35ª Bienal em meados de 2022.
    • Meu nome é um gesto. Um intervalo, algo entre aquilo que foi, o que é e ainda será. As vozes que me criaram ainda não me nomearam. E não é porque os nomes não importem para elas. Pelo contrário! Trata-se de exercitar o convívio com aquilo que é vivo e, por isso, muda constantemente. Aquilo que tem, ao mesmo tempo, muitos nomes e nenhum.
    • Quando a publicação aqui, numa coreografia de retornos, dançar é inscrever no tempo estava prestes a entrar na gráfica e vivíamos o toró de ideias para este movimento, Meu modo de pensar é um pensar coletivo / antes de estar em mim já esteve nelas, celebramos a chegada de mais vozes à equipe de Educação. Dos ritornelos das experiências de mediação em Bienais, vêm Bruna e Tai.
    • Encruzilhadas é um espaço virtual, no site da 35ª Bienal, dedicado aos caminhos da equipe de Educação decorrentes da publicação educativa da 35ª Bienal, em seus encontros com públicos diversos, agregando contribuições que ampliem e cruzem pesquisas, conteúdos, referências, experiências, vozes e gestos que ainda desconhecemos. “Lugar radical de centramento e descentramento, intersecções e desvios, texto e traduções, confluências e alterações, influências e divergências, fusões e rupturas, multiplicidade e convergência, unidade e pluralidade, origem e disseminação”, evocando as palavras de Leda Maria Martins em Afrografias da memória (Perspectiva, 2021).
    • Você pode assistir ao vídeo de lançamento da publicação educativa no canal da Bienal de São Paulo no YouTube, aqui.
    • Versos da canção “Real periferia”, do grupo de rap RZO.
    • Durante o encontro entre Rosana Paulino e Sueli Carneiro, a artista entoou essa reza para lembrar que a comida preparada para o santo é sagrada e que se realiza sempre como um ato de partilha.
    • Baiano vindo de Salvador, profissão cozinheiro, também trabalhador do Museu Afro Brasil Emanoel Araújo. Tem um terreiro de candomblé, o Ilê Axé Ajagun Fifaia, em Perus, região noroeste do município de São Paulo.
    • Ver poema na íntegra em Zenir Campos Reis (org.), Poemas antológicos de Solano Trindade. São Paulo: Nova Alexandria, 2011, p. 58.
    • Seres além-de-humanes são bactérias, fungos, plantas, animais, minerais, espíritos e ancestrais, parceires de trabalho de Daniel Lie, que podem ser visíveis ou não. A parceria entre elus amplia as pesquisas de Lie em torno dos efeitos da migração e dos estudos queer.
    • Os gestos se exprimem mediante ações poéticas/pedagógicas que convidam os públicos a ativar o livro por meio de reflexões, expressões e experiências nas possibilidades de escritas, reescritas, rasuras, oralidades e imaginações radicais. Para mais informações, acessar: “Correspondências entre vozes, uma carta para abrir conversas”.
    • A Fundação Bienal conta com a consultoria da Mais Diferenças na concepção e implementação do projeto de acessibilidade e inclusão na 35ª Bienal. Agradecemos especialmente Carla Mauch e Ana Rosa Bordin Rabello pelo entusiasmo e pela ideia de experimentar uma audiodescrição poética na publicação educativa. A Mais Diferenças é uma organização que assessora, pesquisa e compartilha conhecimento, práticas e materiais relacionados à educação e à cultura inclusivas, tendo como princípios básicos a acessibilidade e a garantia dos direitos das pessoas com deficiência.
    • A ser realizada de 6 de setembro a 10 de dezembro de 2023, no Pavilhão da Bienal, no Parque Ibirapuera, São Paulo.
    • Em 2024, a itinerância da 35ª Bienal − coreografias do impossível chegará a territórios que ainda desconhecemos, na boa companhia do terceiro movimento da publicação educativa.