35ª Bienal de São Paulo
6 set a 10 dez 2023
Entrada gratuita
A+
A-
35ª Bienal de
São Paulo
6 set a 10 dez
2023
Menu

Celebrar o desvio

Registro de parte do encontro que ocorreu em 16 de novembro de 2023, com Anna Luisa de Castro, coordenadora do Núcleo de Gênero e Diversidade da Secretaria Municipal de Educação de São Paulo, e Geni Núñez, ativista indígena guarani, escritora, psicóloga e poeta, sobre o texto de Geni no segundo volume da publicação educativa, no qual ela comenta o livro de Sonora Reyes, Guia para lésbicas na escola católica,1 e traz reflexões sobre gênero e sexualidade. O encontro fez parte do programa de ativações proposto pela equipe de educação na 35ª Bienal e ocorreu no espaço da obra Parliament of Ghosts [Parlamento de fantasmas] (2023), de Ibrahim Mahama.

anna luisa de castro Todo o mundo aqui, eu posso afirmar, tem um processo de identidade, de gênero e de sexualidade. Vou trazer um conceito que a gente sempre fala, que é o patriarcado. Quem está no topo desse patriarcado, desde que o mundo é mundo? Em especial aqui, pra gente, depois de 1500. Quem está ali nesse topo? O capital não quer que o prazer seja para todo o mundo, não quer que a qualidade de vida seja para todos. Até porque é esse caos do capitalismo que mantém as relações. Certo? Paulo Freire, quando fala pra gente em oprimido e opressor,2 dá uma pista muito importante. Ele diz, de certa forma, que a revolução vai se dar pelos oprimidos. O conceito de interseccionalidade precisa ser chamado o tempo todo. Raça, gênero, sexualidade. A gente entender essa perspectiva no contexto da nossa dimensão, da nossa saúde, da nossa existência, do ser quem somos. Só que, pra gente ajustar isso, eu tenho que fazer de um modo fino, porque, senão, fica só discursivo e não atravessa a nossa subjetividade. E eu ouvi de estudante assim: “Ai, professora, a gente não tá falando pra pegar, levar pra casa, é só respeitar”. Bom, isso não é respeitar, porque quando eu coloco: “Ah, eu convivo com vocês”, isso é tolerar, talvez. Mas, pra levar minha casa, eu escolho a pessoa branca. Escolho a pessoa cis-heteronormativa. Desculpe, isso não é respeitar. Porque você está hierarquizando ainda.

 

“celebrar a possibilidade do desvio”

— Geni Núñez

 

geni núñez Pensei em compartilhar com vocês o porquê desse uso que escolhi pro título do texto, de desviar. Eu não sei se todo o mundo conhece essa palavra de quando, por exemplo, dizem que alguém “sai da Igreja” — e, aqui, estou falando de igrejas de matriz cristã —, que essa pessoa se tornou um desviado. Celebrar a possibilidade do desvio é também pensar que, muitas vezes, o fracasso desse projeto é a melhor coisa que pode nos acontecer, apesar também das violências que acompanham esse gesto. Uma das fontes da minha pesquisa, do meu ativismo, tem sido esse movimento de escuta dos mais velhos, mas também de análise de alguns documentos que desmistificam várias das fake news que a gente escuta. Uma delas é de que as resistências dissidentes da hetero-cis-norma seriam algo recente. Em uma das cartas que eu analiso, de 1551, uma carta do missionário Pero Correia,3 ele diz o seguinte: “Cometem o pecado contra a natureza, de maneira que se lhe chamarem de mulheres, podem se sentir tão ofendidas que atirarão flechadas”. Esse é o primeiro registro histórico que encontrei da recusa de nossos ancestrais de serem designados como mulheres ou como homens. Nessa pesquisa, o que fui percebendo é que não querer ser chamada de mulher e ser chamada de homem envolvia uma recusa de não ser chamada de cristão, porque a ideia de homem e mulher é profundamente atravessada — essa ideia de homem e mulher de verdade — pela heteronorma. A gente vai ver que essa ideia de que alguém que se afasta dessa hetero-cis-norma é menos homem, não é homem de verdade ou não é mulher de verdade, ressurge no cotidiano hoje, mas vem de muito longe. Ler esse livro [Guia para lésbicas na escola católica] foi uma experiência bem intensa para mim. Eu me senti identificada em vários momentos com a personagem. A minha família também sofreu a evangelização, a catequização, e eu fui doutrinada para ser uma missionária com o meu povo. Fico contente de imaginar que deu um pouco errado, mas a ideia era justamente que eu fosse mais um soldado dessa ideologia, né? 

Quando a gente pensa nessa questão de infância e juventude, nas pesquisas que eu tenho feito nessas cartas jesuíticas, há vários trechos em que se coloca a ideia de propriedade. E a ideia de propriedade também estava posta nas crianças. Essa ideia de que pai e mãe teriam o direito de fazer qualquer coisa com aquela criança, porque o pai e a mãe seriam os donos dessas crianças. Isso não é algo que aparece em nossos povos, essa ideia de posse, de propriedade de outra pessoa. Eu me lembro de uma discussão, há alguns anos, sobre a Lei da Palmada — acho que ficou conhecida assim —, que um amplo setor da sociedade se posicionou contrário a ela. Isso tudo entra em um campo muito complexo, no qual essas pessoinhas são a ponta mais vulnerável das violências da hetero-cis-norma. Nesse livro, a gente acompanha percursos em que essa jovem, a protagonista, começa a fazer uma poupança para tentar se preparar, caso seja expulsa de casa. E eu falo aqui também como alguém da psicologia, do trabalho emocional imenso de uma criança, de um jovem, ter de ficar pensando na possibilidade de ser expulso de casa por não obedecer a essa ordem dominante. Pensar a questão do armário, por exemplo, que, no âmbito da escola, tem a sua incidência, me faz lembrar de uma frase da nossa liderança, que disse que foi um processo muito longo para que as lideranças espirituais aceitassem a entrada da escola nas aldeias. Elas diziam que, se as escolas fossem implementadas nas aldeias, seria a mesma coisa que se fosse a Igreja. Percebem que essa estrutura — eu até me lembro de uma expressão, que é grade curricular, a ideia de escola como (grade) presídio, manicômio, a ideia de pecado, doença e crime são muito íntimas entre si, né? Poder ler esse livro foi também uma maneira de acolher esses anseios no sentido de que muitas das produções de literatura, de cinema, de séries trazem esse elemento catastrófico nas narrativas lésbicas e isso, muito mais do que uma descrição da realidade, é uma maldição. De que você deve acompanhar aquela narrativa e pensar o seguinte: “Olha o que acontece com quem é do jeito que você é”. É uma profecia de uma catástrofe gigantesca de abandono parental, de expulsão, de dificuldade de se manter na escola. Tem até um termo que o professor Rogério Junqueira usa que, em vez de falar evasão escolar, pensar em expulsão escolar,4 como algo que, nessas crianças e nesses jovens, descentraliza a responsabilidade por se manterem em um contexto no qual, muitas vezes, é extremamente angustiante se manter. 

Essa história consegue, ao mesmo tempo, nomear muitas dessas violências e complexidades, sem, no entanto, reduzir toda a experiência à violência, sem reduzir toda a possibilidade de experimentação sexual ao medo, à dor e ao trauma. Não sei se aconteceu com vocês também, mas, na escola em que eu fui alfabetizada, diziam que era para grafar o deus cristão com maiúscula e os outros deuses com d minúsculo. Então, essa norma hegemônica do gênero aparece em uma gramática que é normativa para além das regras gramaticais. Quando se pensa nessa família, é muito raro que, nessa sociedade dominante, a criança esperada seja uma criança trans, uma criança desviante da hetero-cis-norma. E isso é muito pesado para uma criança e um jovem lidarem, saber que as pessoas que seriam o seu lugar de amparo, de acolhimento, são justamente aquelas que lhe dizem que você só vai ser amado se não for quem você é. Parece que um dos desafios que o livro traz muito bem é pensar que essas violências talvez não ocorram apenas em nome do ódio, da raiva, da violência, mas em nome do amor, em nome do bem, em nome da salvação.

Registro do encontro entre Geni Núñez e Anna Luisa de Castro para a conversa © Levi Fanan / Fundação Bienal de São Paulo

“no chão da sala de aula”

— Anna Luisa de Castro

anna Vamos começar falando do currículo, que é a divisão que eu trabalho e aquilo que, de certa forma, está sendo implementado em uma escola agora, na Educação de Jovens e Adultos (EJA), mas que é algo muito complexo, porque quando a gente fala de currículo, o que é esse currículo? Ele tem várias dimensões. E é inegável pensar em Secretaria Municipal de Educação, rede estadual de educação de São Paulo e, quiçá, no mundo. A gente trabalha em uma perspectiva de currículo que não é pós-crítica, não é pós, ela é uma perspectiva de Sacristán,5 de Pacheco,6 que é um currículo, vamos dizer assim, prescrito, e ele tem uma dimensão governamental, inclusive. Então, é importante a gente falar disso. Mas existem outras dimensões, inclusive nessa perspectiva de Sacristán, que é aquele currículo que é apresentado, aquele currículo que é traduzido através de livros, de apostilas, e aquele currículo que chega ali na sala de aula. Inclusive tem uma nomenclatura da qual eu não gosto, que é o currículo oculto, porque, na verdade, ele não é oculto. Mas talvez seja o currículo possível, o currículo da emergência, o currículo que acontece ali no dia a dia, no chão da sala de aula. 

Vamos começar pelo livro didático. Tem vários trabalhos que falam do livro didático. Eu até costumo dizer, sou de exatas, estou aqui pra falar disso. E por quê? Sou de exatas, mas quando eu estou na escola, quando eu estou na educação, eu sou de humanas. Não existem ciências exatas, física, química, biológica dentro de uma unidade educacional. Existe ciências humanas, porque eu estou lidando com o ser humano, naquela perspectiva da integralidade, de buscar a equidade e a inclusão. E, assim, mesmo em um livro de matemática, é em cima, talvez, de figuras, de desenho, como isso é apresentado, como uma criança vê, quando aparecem, por exemplo, pessoas pretas no livro? Em que circunstâncias essas pessoas pretas aparecem, se aparecem? Em que circunstância aparece a pessoa branca? Eu vou falar de uma profissão, medicina, por exemplo. Qual é a cor da pessoa que aparece [representando um médico/médica]? Qual é o gênero? Isso já traz pistas que são violentas. Quando a gente não pensa, não tem essa maturação ali, já começa o erro. 

Agora, indo pra dimensão da sala de aula. Vamos pegar a nossa primeiríssima infância. É quando, talvez, não tenha tanto material escrito.

Mas não tem currículo? Tem, tem currículo. Tem, tem o fazer do dia a dia. E, às vezes, pode acontecer o quê? Que essas violências não aconteçam de forma tão explícita. E é por isso que eu falo, a nossa missão não é simples, porque a gente tem que enxergar profundamente, fazer uma autocrítica profunda. O que pode, o que não pode, que corpos são, vamos dizer assim, desviantes, e que corpos não são. Alguns corpos que não têm lugar, que são considerados desviantes, o que foge da cis-heteronormatividade. Vou falar pra vocês, que não sabem o que é Sistema de Gestão Pedagógica. É um sistema da Secretaria Municipal de Educação, no qual professoras e professores registram o acompanhamento da vida escolar dos estudantes. E é nesse currículo que está a complexidade também. Porque desde a primeiríssima infância a gente já vai fazendo essa separação extremamente nociva. Só acredito em uma mudança quando eu colocar a minha subjetividade também à prova. Fazer de fato diferente. 

Tem pesquisas, inclusive, que indicam que o nosso país é o que mais consome pornografia trans e lésbica também, mas trans em especial. E uma das coisas que acontecem desde a primeiríssima infância é essa marcação excessiva de gênero que prejudica todas as crianças. Seja chá de bebê, as cores dos brinquedos, chá revelação, que já começa ali com essa história. Isso é nocivo a todas as crianças, porque os papéis de gênero já começam ali. E não adianta eu só falar de colocar todo o mundo pra brincar com as panelinhas de madeira, todo o mundo pra empurrar carrinhos, se, depois, quando eu saio do muro verde [sigo com os mesmos estereótipos de gênero e sexismos…]. A escola é integral, é pra todo mundo, é pra profissionais da educação também. Então, não adianta você emular, fingir uma desconstrução e achar que vai colocá-la na prática, porque não vai. Então é pensar também nas divisões, falar sobre as divisões que a gente faz na aula de educação física, na fila. E também concordo, não é evasão, porque evasão é uma comunicação violenta. Você está atribuindo o problema à vítima. Isso é exclusão.

 

“dar um passinho pra trás pra buscar mais gente que ficou”

— Anna Luisa de Castro

 

geni Estava aqui pensando o quanto a ideia de criança-problema também faz parte desse currículo. Pensando na minha área, uma questão que eu queria compartilhar é que, às vezes, aquela criança ou aquele jovem que se expressa de uma maneira raivosa, explosiva, é rapidamente patologizado. No entanto, em muitos casos, não aceitar e se desorganizar de um contexto que é violento é algo muito saudável que essa criança está fazendo. Há também toda uma demonização da raiva, como se fosse algo horrível de expressar. Até me lembro de uma frase do Frantz Fanon, que diz que a raiva, nesse contexto, não pode ser uma granada colada no corpo.7 De algum modo, a gente precisa movimentar isso. Tem aquela frase assim: “para que um grupo minoritário avance, o outro não precisa recuar”.

Eu acho que precisa sim… vocês devem lembrar da discussão do kit gay. Há alguns anos, participei de um projeto chamado Papo Sério,8 que era de discussão de gênero nas escolas, e a gente teve acesso a uma prévia desse material, que sequer chegou a ser distribuído, mas era um material que tinha algumas problemáticas, sim, só que o kit que nunca saiu das escolas desse currículo é o kit cis-hetero. Não basta só pensar nessa ideia de uma inclusão, de acrescentar esses debates quase como se fosse um apêndice, um anexo, coisas que pessoas muito boas fazem, sem que haja uma implicação da hegemonia.

Então, há, sim, que se recuar nessa maneira de apresentar o universal do humano como branco, cis, sem deficiência, magro. 

Outro ponto que fiquei pensando, que também ecoa na cosmogonia do meu povo, na nossa espiritualidade, é que uma das práticas que desde 1600 já tem registro no nosso povo eram as práticas de desbatismo guarani. Nessas práticas, o primeiro gesto que a liderança espiritual fazia era devolver nosso nome em guarani. A gente diz até hoje que nosso nome verdadeiro é o nome em guarani. Como esperar que as pessoas fiquem confortáveis e queiram viver de maneira plena se elas não têm direito ao próprio nome? E ter direito ao próprio nome, inclusive se elas quiserem mudar esse nome outras vezes. Uma das perguntas que às vezes se faz é a seguinte: “Não é uma fase? Você tem certeza que vai ser sempre desse jeito?”. E então, até nos processos do Sistema Único de Saúde (SUS) há esse tipo de exigência. Isso é uma péssima lição para as crianças e os jovens, de que só vale aquilo que é imutável, né? Então, vamos supor que seja uma fase. É digno que seja, no tempo que for. Quando penso essa questão do currículo, penso muito também na importância de ter uma fluidez desse movimento que acompanhe e que dê o direito à experimentação. 

E outro ponto que eu anotei é que há uma assimetria de poder nisso tudo. Quando a gente vê as figuras parentais, as figuras na escola, são pessoas que têm o direito de expulsar, o direito de reprovar, o direito de excluir. Pensar nessa assimetria é o primeiro passo. Não supor que é tudo horizontal e linear quando há uma marcação institucional e estrutural que vai além dos próprios indivíduos. Fico pensando muito nessa ideia de que, para lidar com essas violências, a gente não precisa apostar em uma ideia de independência, de autossuficiência. A gente continua precisando de vínculo, de apoio, de amparo. Mas talvez o que precise mudar nesse currículo seja o direcionamento. Onde a gente busca esse tipo de comunidade, de amparo, de família, de afeto, né? Eu até me lembrei de uma das oficinas, que era para o terceiro ano, e uma das dinâmicas que nós fazíamos era a seguinte: o que é homem de verdade? E então as crianças falavam uma série de atributos, e eu lembro que uma criança falou assim: “Se homem de verdade é aquele que se casa com mulheres, tem filho, tem família, então o papa não é homem, professora?”. E achei ótimo pensar também as ferramentas que as crianças têm de elaboração, de criação, de invenção, suas maneiras de trazer significados. A pedagogia pela punição foi trazida nesse processo civilizatório colonial, e os missionários ficavam indignados que as famílias guaranis ensinavam só pela brincadeira. E aí eu fico pensando quanto esse movimento de brincadeira não deveria ser algo circunscrito à infância, mas a toda a nossa experiência de sexualidade e de existência. Isso envolve também outra relação com a arte. Quando o jovem se interessa por essa dimensão artística rapidamente é recriminado, de que isso não dá futuro, não dá vida, não dá dinheiro. No entanto, às vezes, esse é o jeito não só de a pessoa ter um trabalho, mas é um jeito de ela continuar viva, né?

Registro da conversa entre Anna Luisa de Castro e Geni Núñez na instalação de Ibrahim Mahama © Levi Fanan / Fundação Bienal de São Paulo

anna Antes de qualquer coisa, eu preciso falar: a escola é um recorte da nossa sociedade e, por isso, é, sim, racista; é, sim, machista; é, sim, LGBTfóbica. Não dá pra negar, porque são as pessoas que estão ali. Ao mesmo tempo, essa escola que é de fato insegura para algumas crianças, tem sido, talvez, a única opção para muitas delas. E é importante a gente falar. É trabalhar juntos, entender que precisamos atender essa diversidade. A diversidade sou eu. Não por ser uma mulher trans, mas porque sou uma pessoa. Se a gente fala de diversidade, então é todo o mundo aqui. É pensar por que historicamente a gente tem corpos que foram considerados desviantes. E a gente precisa olhar com atenção para isso. A invisibilidade de corpas lésbicas começou quando a gente remonta a Stonewall, em junho de 1969;9 ali, tudo começou. Quando a gente fala “a história”, a gente esquece que, na história, no navio que veio pra cá com pessoas escravizadas, tinha perspectivas, inclusive trans, e que simplesmente são ignoradas. Às vezes é dar um passinho pra trás, mas é dar um passinho pra trás pra buscar mais gente que ficou.

geni Acho que essa violência do racismo institucional é algo que provoca uma exaustão imensa. Porque já demora para existirem essas oportunidades e, quando existem, ainda não tem esse mínimo amparo. Eu penso que alguns movimentos têm acontecido por isso, mas ainda são insuficientes, muito incipientes. Ao mesmo tempo, as ações afirmativas são fundamentais, mas me preocupa também o quanto, por vezes, parece ser o único caminho. Isso me lembrou uma fala do Ailton Krenak ao contar que, com a Constituição de 1988, a promessa era de que em até quatro anos todas as terras indígenas seriam demarcadas. Todas essas leis foram elaboradas não para serem cumpridas, exceto aquelas que dizem respeito à punição de nossos parentes, porque, para eles, a política pública de encarceramento, essa funciona, né? Pensar também o quanto o Estado oferece essas migalhas e então começa essa série de disputas por elas, que, propositadamente, são insuficientes. Uma experiência a partir das iniciativas do nosso povo, das quais eu faço parte, de que tem esse caminho pelas demarcações por meios jurídicos, tem a equipe de advogados, mas tem ao mesmo tempo as autodemarcações. Esse processo de poder ir além do Estado nessas lutas é algo que eu fico pensando, como a gente pode exigir e ocupar esses lugares sem essa espera que nos violenta tanto? O que a gente pode pensar coletivamente para que não seja mais uma questão de poderem escolher ou não se nos dão esse direito.

 

“como é que a gente consegue imaginar o pensamento e a razão como algo que passa pelo joelho, pelo ombro, como que desloca também a ideia de corpo”

— Geni Núñez

 

anna A questão do corpo, principalmente na educação da cidade de São Paulo, que é promovida pelo município, eu acho que dialoga muito, porque a gente trabalha com corpos, não dá pra gente falar de um currículo que não olhe para as materialidades e pro corpo na primeiríssima infância. Precisamos colocá-lo à prova, porque a impressão é que todos os corpos vão bailar, menos o meu. Assim, a gente tem o corpo que está com medo, o corpo que não quer se afetar, o corpo que não quer se envolver. O corpo… E esse mesmo corpo, tem momentos em que ele se afeta, tem momentos em que ele não se afeta, tem momentos em que ele acaricia, tem momentos em que ele traz uma outra expressão. É isso, né? A expressão corporal está intimamente ligada com a nossa educação infantil na primeiríssima infância, e acho que precisa ser mais bem estudado e pontuado, inclusive nos nossos currículos. A gente precisa partir, sem sombra de dúvida, desse lugar também da subjetividade. Porque a gente se engana quando acha que apenas o objetivo vai resolver; não irá resolver.

geni Fiquei lembrando de uma fala do parente Anastácio Kaiowá.10 Ele diz que a Terra é um ser vivo e tudo que é vivo precisa de descanso. E eu fiquei pensando que alguns dos efeitos do cansaço e da exaustão, que a gente às vezes não atribui, mas que tá ali conectado, é a tristeza, é o estresse, é a sensação de impotência. Então, eu fico pensando muito em como a gente pode fazer essas lutas tendo essa lembrança de que a gente precisa de descanso e que a gente não dá conta de tudo. Não é porque a gente não dá conta de tudo que não dá pra fazer nada também. Uma das falas mais comuns contra nossos povos é que nós seríamos preguiçosos. Essa ideia de que quem não se sujeita a essa lógica capitalista colonial é preguiçoso, acho muito irônico, porque, se alguém fosse preguiçoso, deveria ser quem escraviza e não quem é escravizado, certo? Fiquei pensando de novo em uma frase do Frantz Fanon, ele diz que o mundo colonial é dividido em compartimentos. Às vezes, parece que essa crítica da mentalização, da racionalização é substituída por uma corporificação. Só que é parte do mesmo problema, porque mente e corpo são esquemas binários da mesma divisão. Então, fico pensando como é que a gente consegue imaginar o pensamento e a razão como algo que passa pelo joelho, pelo ombro, como que desloca também a ideia de corpo… Isso também de considerar que o corpo se encerra na pele é algo que a respiração nos lembra de que temos um tamanho muito além e muito aquém do que se coloca, né? Toda centralização, seja no amor romântico, seja no trabalho, vai nos adoecendo de alguma forma. Até queria encerrar com uma fala de uma parenta Kerexu Yxapyry,11 que sempre comenta que as pessoas dizem: “Índio só quer saber de terra, sombra e água fresca”. E ela diz: “É pouca coisa?”. E eu acho muito bonito, porque às vezes a parte do currículo, do pensamento, da reflexão é a sombra e a água fresca.

    • Sonora Reyes, Guia para lésbicas na escola católica, trad. Jana Bianchi. Itapevi: DarkSide, 2023.
    • Paulo Freire, Pedagogia do oprimido. 84. ed. São Paulo: Paz e Terra, 2019.
    • Pero Correia, “Cartas avulsas: 1551-1568”, in Cartas jesuíticas II. Rio de Janeiro: Oficina Industrial Gráfica, 1931.
    • Ver também: Berenice Bento, Na escola se aprende que a diferença faz a diferença, in: Revista Estudos Feministas. Florianópolis, vol. 19: p. 548-559, 2011.
    • José Gimeno Sacristán, professor de didática e de educação escolar, autor de diversos livros sobre currículo escolar.
    • José Pacheco, pedagogo e antropólogo, um dos fundadores da Escola da Ponte, estruturada em modelos não tradicionais de ensino e de educação.
    • Frantz Fanon, Pele negras, máscaras brancas, trad. Renato da Silveira. Salvador: EDUFBA, 2008.
    • Projeto de extensão na área da educação, articulando gênero, sexualidade, diversidade e direitos humanos, que ocorreu na Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) entre 2007 e 2015.
    • A Revolta de Stonewall, em 1969, foi marco político e cultural para movimento LGBTQIAPN+, quando travestis, pessoas trans, drag queens, lésbicas, majoritariamente racializadas e latinas se revoltaram contra as violências policial em Stonewall Inn, bar em Nova York que recebia constantes e violentas batidas policiais.
    • Também conhecido como Anastácio Peralta, liderança indígena Guarani Kaiowá, com experiência na área de Recursos Florestais e Engenharia Florestal.
    • Liderança indígena guarani, mãe, professora, pesquisadora e gestora ambiental. Atualmente é secretária de Direitos Ambientais e Territoriais Indígenas do Ministério dos Povos Indígenas.

Sobre a autoria

Anna Luisa de Castro é professora de matemática e ciências da RMESP desde 2004. Atua na Divisão de Currículo da Secretaria Municipal de Educação da cidade de São Paulo, onde coordena o Núcleo de Gênero e Diversidade. Doutora em educação para a ciência pela Unesp, mestre em educação matemática pela Universidade Bandeirante de São Paulo e licenciada em ciências exatas pela USP.

geni núñez é ativista indígena guarani, escritora e psicóloga. É doutora pelo Programa Interdisciplinar em Ciências Humanas da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC, Florianópolis, SC), mestre em psicologia social e graduada no curso de psicologia pela mesma universidade. É co-assistente da Comissão Guarani Yvyrupa, membro da Articulação Brasileira de Indígenas Psicólogos(as) (ABIPSI), membro do Observatório da Kuñangue Aty Guasu Guarani Kaiowá e membro da Comissão de Direitos Humanos (CDH) e do Conselho Federal de Psicologia (CFP).