35ª Bienal de São Paulo
6 set a 10 dez 2023
Entrada gratuita
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35ª Bienal de
São Paulo
6 set a 10 dez
2023
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Faixa 11

Aurora Cursino dos Santos

Chegamos ao espaço dedicado à artista Aurora Cursino dos Santos. Ela nasceu em 1896, em São José dos Campos, e faleceu em 1959, em Franco da Rocha, São Paulo. 

Desde a juventude, Cursino se interessou por música, literatura e artes plásticas. Fugindo de um casamento forçado e indesejado, que durou apenas um dia, exerceu diversos ofícios, dentre eles os de prostituta e empregada doméstica. Viveu na cidade do Rio de Janeiro e provavelmente esteve em alguns países da Europa, como Portugal. Em São Paulo, ela teve sua trajetória marcada pela internação em hospitais psiquiátricos, especialmente o de Juquery, em Franco da Rocha. Ali recebeu os diagnósticos de “personalidade psicopática amoral” e “esquizofrenia parafrênica”. Ao mesmo tempo, ela participou de oficinas de pintura e foi aluna da Escola Livre de Artes Plásticas. Não à toa, grande parte das pinturas de Cursino foram feitas sobre papel-cartão, material que havia no Hospital do Juquery. 

A obra de Aurora tem um caráter autorreferenciado. Muitas de suas imagens retratam, em forma de denúncia, aspectos que perpassam sua própria biografia, como a objetificação das mulheres, abusos e a violência das instituições psiquiátricas da época. Nas telas, é comum que elementos pictóricos delineados por traçados espessos e livres sejam combinados com escritos, estimulando-nos a refletir sobre as relações entre as artes visuais e a prosa.

Esta Bienal conta com uma série de 21 peças com 31 obras de Cursino, pois algumas são frente e verso. Conheceremos agora uma delas, Sem título e sem data, mas que podemos referenciar como A Brazileira. Ela é feita com tinta óleo sobre papel, e possui frente e verso. Suas dimensões são 50 centímetros de altura por 34,5 centímetros de largura. 

Na frente, Cursino retrata uma mulher numa praça. Tudo é feito em tonalidades escuras, indicando que é noite:  amarelo, laranja, cinza escuro, verde. Nos traçados, predomina o preto. A mulher está de vestido azul escuro com mangas vermelhas e um chapéu na cabeça. Suas mãos estão erguidas, tocando o chapéu. A mulher olha em direção a um monumento, no centro da pintura. Ele é pequeno em relação ao tamanho da mulher, o que, numa noção de perspectiva, significa que o monumento está ao fundo. A figura no monumento trata-se de um homem que se equilibra sobre um retângulo. O homem leva a mão esquerda ao alto. Ao redor de toda a praça estão postes de luz acesos, algumas árvores e casas coloridas, com portas e janelas. Na fachada de uma das casas está escrito: “A Brazileira”. 

Essa pintura provavelmente representa o Largo de São Francisco de Paula, no Rio de Janeiro, onde a loja de departamentos A Brazileira era localizada. A estátua no centro da praça é do fidalgo José Bonifácio, “Patriarca da Independência”. A mulher que aparece na tela refere-se ao ofício de profissional do sexo. Enquanto as famílias que consomem os produtos da loja A Brazileira dormem, ela ocupa o espaço noturno, e o monumento lhe serve de companhia. 

No verso da obra há dois elementos pictóricos predominantes: imagens coloridas de pessoas e muitas palavras escritas em preto e com erros de ortografia, tudo sobre um fundo marrom. Um grupo de quatro pessoas, todas bem juntinhas, olham de soslaio para uma quinta pessoa, que está mais ao longe, sentada a uma mesa. No grupo, duas das pessoas vestem uma roupa branca, possivelmente um avental médico. As outras pessoas são mulheres. Elas usam elegantes vestidos e chapéus nas cabeças. Uma delas é loira e seu vestido é preto. A outra é morena e seu vestido é azul escuro. Os rostos delas e dos médicos são pintados com cores vibrantes de amarelo, laranja, vermelho e rosa. A pessoa mais ao longe veste uma roupa negra, com uma gravata borboleta no pescoço. A gola da roupa se estende sobre a mesa, dando a impressão de que a pessoa está acorrentada à ela. Suas bochechas são muito vermelhas, e a expressão é séria. 

Ocupando todo o fundo da pintura estão as seguintes palavras: 

“Política estadual e nacional
Mendonça se esplique
Ibrahin nobre diga
Vida de Aurora Cursino
[ilegível] Guatambu
[Ilegível]
Fracisca Zaes etc. roubou em Portugal com meu nome muitas vezes e, ainda levou eu dormindo
Electri meio tonta e encobrir ella
E a prima e Susana Descolzi
Pois eu Aurora sou a caipirinha
Maça internacional e universal catholica e ellas
Com isso ussam meu
nome dirigidas por
Guatambu e Dr.  João Sampaio.
Tem cumplices nos portos e Dr. Ibrahim
Se esplique direito
Por ter sido eu presa
Uma vez sou
Honesta”

Como diz Tatiana Nascimento para o catálogo desta Bienal, Cursino nos traz “uma dor de muitos nomes: machismo, misoginia, patriarcado, opressão, violação, desrespeito, desumanização… […]. Mas parece que, além de tantas facadas, os tantos olhos que pintou buscam vestígio desse mundo-sonho – em que mulheres, qualquer profissão que tenham (ou não), independentemente do quanto tentem os muros das casas de patroa, das celas manicomiais estrangular, sufocar, silenciar… um mundo em que qualquer mulher, por mais indigna que seja considerada, ‘psicopática amoral’, possa prever-se futuro feliz”.