35th Bienal de São Paulo
6 Set to 10 Dec 2023
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Sobre o silêncio entre imaginar o possível e nomear o impossível

Este relato é sobre uma experiência de deslocamento. De fato, são quase 35 quilômetros que separam o Pavilhão Ciccillo Matarazzo da EE Dr. Antônio Pereira Lima. Mas, se é certo que a distância produz diferenças, o que se produz a partir da diferença? Relembrando o encontro que tive com uma turma de nono ano nessa escola, a ideia de deslocamento recebeu um sentido mais profundo, que não se reduz a uma experiência no espaço físico e convoca educadoras/educadores e instituições a elaborarem coreografias complexas que envolvem tempo, espaço e afetos coletivos e singulares.

Como imaginar o possível?
Como nomear o impossível?

Essas perguntas foram levadas a um grupo de alunos do nono ano da EE Dr. Antônio Pereira Lima, em Parelheiros, no extremo sul da cidade de São Paulo. Na verdade, além dessas, foram apresentadas também outras quatro perguntas trazidas pelo coletivo curatorial da 35ª Bienal, no início das conversas sobre a publicação educativa.1 Mas, ao trabalhar especificamente com essas questões, havia dois objetivos: incentivar a turma a imaginar uma realidade para além daquela em que nos encontramos naquele momento e nomear os obstáculos ou as impossibilidades para criar outras realidades.

o plano

Por algum tempo me perguntei se, do ponto de vista desses objetivos, essa atividade poderia ser definida como um fracasso ou não. Eu já sabia que, nesses casos, a régua para medir sucesso ou fracasso passa longe da precisão, mas somente depois entendi que são muitas as maneiras de nomear o impossível e/ ou imaginar o possível. E elas são tantas e tão variadas que os silêncios que aquela turma partilhou − com o que pudemos conversar naquela tarde − foram uma aula que nunca tive sobre o atravessamento dos afetos não só nos processos criativos, mas em nossa expressão como pessoas no mundo.

A ação foi idealizada em colaboração com o assessor André Leitão, que não pôde estar presente na escola em virtude das demandas da exposição. Por essa razão, contei com o apoio de Giovanna Endrigo, assistente de educação da Fundação Bienal, uma companhia divertida e cuidadosa. Além de Giovanna e eu, o grupo que visitou a escola era formado por Marli Virtz e Luma Nunes, ambas da Diretoria de Ensino – Região Sul 3. Fica aqui nosso agradecimento a elas pela escuta generosa em todos os momentos. 

Estruturado em três etapas, o encontro tinha um primeiro momento, que consistia em uma leitura coletiva das seis perguntas disparadoras da publicação, seguida de uma roda de apresentação, na qual cada pessoa dizia seu nome e escolhia uma das perguntas para comentar. Concluída essa rodada, era então o momento de uma apresentação concisa sobre as Bienais de São Paulo, para então tratar de coreografias do impossível, o coletivo curatorial e alguns artistas. A última etapa era trazer de volta as perguntas “como imaginar o possível?” e “como nomear o impossível?”, e, a partir delas, discutir nossa presença naquele espaço-tempo e especular outras formas de existir, outros lugares para estar, levando em conta os impedimentos e as impossibilidades. Com base nisso, poderíamos registrar nossas ideias, criar frases, desenhos e acolher todo tipo de manifestação criativa do grupo.

o encontro 

Quem chega à EE Antônio Pereira Lima − e se depara com o verde, as chácaras e, principalmente, o silêncio que domina a paisagem da estrada do Jusa − pode facilmente cair na tentação de se questionar se ainda está [dentro dos limites da] na maior cidade do país. Nossa chegada, com um pequeno atraso, não impediu uma recepção calorosa por parte da direção. Na sala de aula, a turma 2 já estava à espera e, mesmo sem saber muito sobre o que seria a conversa, ofereceu um simpático acolhimento.

Durante as duas primeiras etapas, a ação transcorreu sem nenhum sobressalto. Não foi difícil estabelecermos uma conexão e, enquanto falava de conceitos e mostrava imagens das obras projetadas, conseguia observar e interagir com as reações da turma. Repeti e expliquei o sentido de certas palavras quando reconheci testas franzidas. Demonstrei compreender alguns trocadilhos e olhei com ar de desaprovação em uma ou outra brincadeira de tom mais ofensivo entre colegas de turma.

Mas algo mudou quando chegamos à última parte, quando disse que então era a turma que iria falar. Veio o silêncio, o primeiro da tarde. Depois, quando perguntei se estavam em silêncio por conta de dúvidas em relação às duas perguntas (“como imaginar o possível?” e “como nomear o impossível?”), um pequeno caos se instalou na sala de aula. As questões que tínhamos lido havia alguns instantes se tornaram incompreensíveis. Foi só depois de algum tempo e com a ajuda de Luma que resumimos os atos “imaginar o possível” ou “nomear o impossível” com relações que podemos ter com os nossos sonhos. Imaginar o possível seria como pensar nas etapas para realizar nossos sonhos, enquanto nomear o impossível seria reconhecer os impedimentos para que isso pudesse acontecer.

Mais um silêncio. 

Foi quando um professor disse algo como:

 — Eu sei por que isso acontece. Eu cresci aqui, já fui como eles. Acontece que a gente fica isolado. Tudo é tão longe, que a gente fica assim. Não consegue imaginar uma coisa além disso.

Outro silêncio. Eu ouvi o professor e fiquei tocado. Por um instante, sua fala rompeu o silêncio circundante, o silêncio da estrada do Jusa, que pode facilmente caracterizar aquele lugar como lugar distante. Isso me fez lembrar de minha trajetória em uma escola semelhante àquela, em uma periferia semirrural que sempre me fez sentir distante do lugar onde as coisas reais acontecem na cidade…

a discordância 

Enquanto tudo isso acontecia, e ninguém olhava, um aluno de boné vermelho balançava a cabeça de um lado para o outro. Era evidente o incômodo dele ao ouvir a opinião do professor e seu susto quando percebeu que eu o tinha visto. Primeiro, confesso que fiquei incomodado com a recusa dele, que atrapalhou a minha experiência estranhamente reconfortante de identificação com o professor. Depois, quando percebi o susto do rapaz, tomei consciência do quanto meu olhar tinha um potencial coercitivo. Foi então que, ainda olhando para ele, perguntei à turma se todos ali concordavam com o que o professor havia dito sobre a distância atrapalhar nossa capacidade de sonhar. A minha surpresa foi que não foi só o aluno de boné vermelho que manifestou discordar dessa tese, mas várias outras pessoas ao redor.

Só restava perguntar o que, de fato, os impedia de sonhar ou de falar de seus sonhos. A resposta de uma aluna veio numa voz baixa: vergonha. E boa parte da turma pareceu concordar com isso. Professores presentes protestaram, dizendo que conheciam o comportamento daquelas figuras o suficiente para contestar a presença desse sentimento na turma. Será que o significante vergonha tinha o mesmo sentido para todas as pessoas naquela sala? Ainda me questiono sobre isso. Entendi que a vergonha não impedia as pessoas da turma de sonhar, apenas de partilhar desejos e aspirações na coletividade. É interessante como, a partir disso, a Bienal e as coreografias do impossível ficaram de lado. Na última parte do nosso encontro, decidimos fazer algo que estava entre uma pesquisa e uma votação para definir o que sustentava o silêncio a respeito dos sonhos de jovens de uma turma de nono ano da EE Dr. Antônio Pereira Lima.

deslocamentos

A lousa se tornou uma espécie de placar. Além da Vergonha e da Distância, o Medo e o Dinheiro eram candidatos a silenciadores da turma, mas não demorou muito para que dinheiro fosse desclassificado. Marli argumentou que ele seria um rival forte demais para essa competição. Para ela, o Dinheiro sempre seria considerado o maior problema para as pessoas empobrecidas em uma sociedade capitalista. Aparentemente, toda a turma concordou e, então, a votação continuou tendo o Dinheiro como hors concours. Quem mais poderia ser, ao lado do Dinheiro, o silenciador de sonhos?

A vitória da Vergonha foi fácil, a maioria dos presentes a escolheu como aquela que impediu a turma de falar sobre seus sonhos naquele dia. Houve protestos por parte de alguns professores. “Mas vergonha de quê? Será que é assim que boa parte dessa gente se comporta no rolê?” Independentemente do resultado daquela pesquisa/eleição, foi evidente a mudança no clima da turma. Um mal-estar recebeu um nome, e todos pareciam aliviados, e então houve espaço para brincadeiras e a surpresa com a rápida passagem do tempo. Concluída essa edição do projeto Bienal nas Escolas,3 tenho a impressão de que o principal desafio é o de realizar deslocamentos radicais. Um tipo de deslocamento que consegue também indagar o interesse na distância e naquela/e que está distante. Quando se vai a outro território, a intenção é criar laços ou, apenas, romper fronteiras? Um projeto busca ser múltiplo, variado ou apenas maior, mais conhecido? Como realizar deslocamentos na dimensão espacial e, ao mesmo tempo, acolher e criar vínculos que deslocam também os afetos e o discurso sobre nossa realidade comum? Esse relato existe agora como a consciência desse desafio e, sobretudo, como um agradecimento ao aprendizado com que a comunidade da EE Dr. Antônio Pereira Lima nos presenteou. 

    • As seis perguntas foram: O que é o impossível? O que é impossível? Como nomear o impossível? Como imaginar o possível? O que é possível? O que é coreografia?
    • Além de dezessete alunos, havia professores que acompanharam partes da ação, de acordo com sua disponibilidade.
    • O projeto Bienal nas Escolas promove encontros em escolas que não puderam visitar outras edições da mostra, e que estão distantes do Parque Ibirapuera. Na 35ª Bienal, em parceria com a Diretoria Ensino Sul 3, participamos da Orientação Técnica dos professores de arte e visitamos duas escolas de Parelheiros: EE Dr. Antônio Pereira de Lima e EE Hermínio Sacchetta. Ambas visitaram a 35ª Bienal depois dos encontros em sala de aula.