Para adentrar o impossível: a beleza terrível em três tempos
Como preservar a integridade da beleza terrível?
um conceito; o diário de uma mãe; um lugar onde o fim do mundo acontece a todo tempo; o fogo. Foram estas algumas das definições para o que poderia significar a beleza terrível 1, partilhadas pelas pessoas durante a visita para adentrar o impossível: a beleza terrível em três tempos.
Nosso encontro tomava como ponto de partida pensar os diferentes sentidos que o simples gesto de unir duas palavras aparentemente antagônicas – beleza e terrível – poderia assumir.
Ao lado da derrota e do terror, havia isso também:
o vislumbre de beleza, o instante de possibilidade. 2
tempo i:
o impossível
Para responder a pergunta que intitula este relato, é necessário evidenciar que desde o princípio havia a preocupação de não romantizar ou reencenar as múltiplas violências que circunscrevem de diversas maneiras as vivências partilhadas nas obras ou nos corpos que se encontravam ali para a visita. Sendo assim, o impossível e a proposta radical de adentrá-lo, tomou para nós a forma de um corpo mutante. Ora lugar, ora sensação; ora promessa ou cicatriz. A metamorfose constante de um diálogo íntimo entre o familiar e o desconhecido, o pessoal e o coletivo. A transmutação de tudo aquilo que permeia uma travessia.
tempo ii:
o tempo e a fabulação
Vivências e saberes que fogem aos olhos impositivos do que outrora mereceu ser documentado, aqui entendidas como instrumento fundamental para adentrar o impossível; para que pudéssemos nos relacionar com aquilo que escapa às legendas e constituir uma prática sensível da recusa, seja a de sentido único para a interpretação de uma obra de arte e/ou da suposta linearidade do tempo.
Utilizamos o livro A água é uma máquina do tempo, da artista Aline Motta, como oráculo. Frente à obra de mesmo título, dois participantes escolheram trechos para compor o coro de interpretações que a vídeo-instalação evoca.
ELA PROCURA POR MIM, APAREÇO QUANDO POSSO. 3
A palavra tempo, presente no título da obra, aprofundava a nossa discussão. Pensar o tempo afastava do relógio e abrigava no corpo. E então, a união de tempo e corpo resultava em pensar-memória. Tornava-se necessário pensarmos juntos sobre quais são os aparatos do lembrar; quem nos ensina sobre a história – de um país, de uma família – e as metodologias necessárias para aprender a não esquecer.
tempo iii – o fogo e as pipas
As enormes estruturas que compõem a instalação Blackbasedbeingbeyond, de Torkwase Dyson, transmutaram-se em agogôs gigantes – instrumento que na capoeira é utilizado para marcar a cabeça do tempo – marcando três tempos no Pavilhão, que por nós foram intitulados de passado, presente e futuro. Encontrar a recordação de um jogo de infância era possível nos patuás da Parede da memória. 4 Se, quando solitários, algum de nós poderia ignorar ou esquecer algum daqueles rostos que Paulino reproduziu e dispôs lado a lado, a presença massiva instaurada pelo coro tornava inegociável sua lembrança.
Então, desaparecemos juntos para adentrar outras temporalidades. Hasteamos pipas aos céus 5 com novos nomes e olhares a nos procurarem. A beleza terrível ressurgia como o instante de possibilidade 6, antes que o fogo descrito como tão belo de se olhar, quanto terrível em sua ação devastadora por uma das visitantes, nos alcançasse. Suponho que esteja aí a nossa resposta: preservar a integridade da beleza terrível seria, talvez, fazer do corpo um poço d’água fundo para guardar tudo aquilo que o fogo faz sumir.
- HARTMAN, Saidiya, Vidas rebeldes, belos experimentos: histórias íntimas de meninas negras desordeiras, mulheres encrenqueiras e queers radicais. Trad. Floresta. São Paulo: Fósforo, 2022.
- Id, Vênus em dois atos, trad. Fernanda Silva e Sousa e Marcelo Ribeiro. ECO-Pós, Rio de Janeiro, v.23, n. 3, pp. 12-33, 2020, p. 24.
- Ver A água é uma máquina do tempo de Aline Motta, Editora Fósforo, 2022, p 86-87.
- Obra da artista Rosana Paulino, data de 1994 à 2005, presente na 35ª Bienal, 2023.
- Francisco Toledo, Papalotes de los desaparecidos (2014), projeto presente na 35ª Bienal, 2023.
- Saidiya Hartman, op. cit.