35th Bienal de São Paulo
6 Set to 10 Dec 2023
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São Paulo
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Correspondências entre vozes, uma carta para fluir conversas

No começo me deram o nome de… 1 e queriam que eu fosse a voz a anunciar o que estava por vir: modos de aprender e ensinar em uma exposição de arte contemporânea. Fui sonhada antes, para estar durante e, depois, falar sobre o que foram as coreografias do impossível. Mas, agora, no momento em que você me lê, o convite é para desafiar a lógica do antes-durante-depois e abraçar uma outra relação com o tempo.

No começo me deram o nome de… 1 e queriam que eu fosse a voz a anunciar o que estava por vir: modos de aprender e ensinar em uma exposição de arte contemporânea. Fui sonhada antes, para estar durante e, depois, falar sobre o que foram as coreografias do impossível. Mas, agora, no momento em que você me lê, o convite é para desafiar a lógica do antes-durante-depois e abraçar uma outra relação com o tempo.

Eu sou… e minha existência é começo, meio e começo, como ensinou Mestre Bispo. 2 Para ele, nossas vidas não têm fim. “A geração avó é o começo, a geração mãe é o meio e a geração neta é o começo de novo.”3 Afinal, a gente só deixa de existir quando não está mais presente na memória de quem nos encontrou pelo mundo, não é? E pensar assim é diferente de pretender a eternidade, mas tentar negar uma existência solitária.

Talvez você se lembre de quando eu disse que era feita de encontros. 4 E, de lá para cá, me fiz e refiz muitas vezes. Esta é a terceira − que é, ao mesmo tempo, a última e a primeira − correspondência da publicação educativa da 35ª Bienal de São Paulo. Ela contém memórias de encontros, com um corpo atento àqueles que aconteceram durante os 83 dias de exposição aberta. Também relembra quase três meses de formação da equipe de mediação, ao compartilhar o programa do curso proposto a essas novas vozes que se somaram a mim, além de registros de ações que aconteceram distantes do Parque Ibirapuera e se relacionam com as coreografias do impossível, como o projeto Bienal nas Escolas e a parceria com o coletivo Djunta Mon.

Com razão, muitos afirmam que cada edição da Bienal é única, ainda que a 35ª Bienal − como qualquer outra exposição − não exista como uma mesma realidade para todas as pessoas que nela trabalham ou visitam. Se for certo que as vozes que me compõem, bem como as várias pessoas, seres e objetos que estiveram em coreografias do impossível, partilharam uma realidade comum por algum momento, não se pode afirmar isso sobre o que cada um/uma vivenciou na exposição.

Quantas Bienais coexistem em uma única Bienal? Impossível saber.O que está reunido nestas páginas não são apenas recordações da 35ª Bienal, são ensinamentos que se abrem para trás e para a frente, em uma temporalidade curva, na qual “tempo e memória são imagens que se refletem”. 5 Exemplo disso são as transcrições dos “Encontros sobre a publicação educativa”, que aconteceram no Parliament of Ghosts [Parlamento de fantasmas] (2023), 6 como parte da programação pública.

Diálogos abertos com visitantes da mostra, que dão continuidade às discussões presentes nos outros dois movimentos e que, agora, aparecem neste terceiro volume. Como no encontro entre a psicóloga, escritora e ativista indígena guarani Geni Núñez e a coordenadora do Núcleo de Gênero e Diversidade da Secretaria Municipal de Educação de São Paulo Anna Luisa de Castro, ambas participantes do segundo movimento. Enquanto Anna Luisa compôs o grupo que coreografou palavras para o lambe-lambe, 7 Geni assinou o texto “Desviar para se encontrar: reflexões com base no livro The Lesbiana’s Guide to Catholic School. 8 O movimento entre elas partiu desse texto para abrir uma discussão na 35ª Bienal que abordou os desafios e as perspectivas das relações entre as instituições de ensino e as dissidências sexuais e de gênero. “Celebrar o desvio”, flecha e convite “rumo a horizontes mais potáveis de existência”.

Outro encontro sobre a publicação educativa que faz parte deste movimento é “Experimentar o chão: conversa sobre infâncias”, com Cintia Aparecida Delgado e Regina Aparecida Pereira, do Quilombo Cafundó, e Sandra Benites. Esse diálogo repercutiu o texto de Benites intitulado “Nhe’ẽ para os Guarani (Nhadewa e Mbya)”, 9 do primeiro movimento, e propõe uma profunda discussão sobre os sentidos de ser criança em comunidades indígenas e quilombolas, tratando de práticas pedagógicas tradicionais e do reconhecimento dessas comunidades como territórios educadores. Em meio a hectares inóspitos de eucalipto, aconteceu a visita ao Quilombo Cafundó. A recepção de Cintia Aparecida Delgado e Regina Aparecida Pereira foi calorosa, com café, almoço da roça, paçoca pilada pelo grupo ao ritmo dos tambores, oficina de abayomi e caminhada no território para ouvir as histórias que partem daquela terra e da luta de seus ancestrais.

Leda Maria Martins dançou e inscreveu no tempo, em uma coreografia de retornos; Rosana Paulino nos acompanhou na passarela com o samba-enredo “Meu modo de pensar é um pensar coletivo / antes de estar em mim já esteve nelas”. Foi esse chamado à coletividade que nos moveu a descentralizar a figura de abre-alas. Para esse terceiro movimento, chegamos com Cintia Aparecida Delgado, Regina Aparecida Pereira, Sandra Benites e Carmen Silva, fundadora do Movimento Sem Teto do Centro (mstc), presente com a Cozinha Ocupação 9 de Julho. Elas são as nossas griotes. 10

Seguindo na trilha do cuidado e da transmissão das histórias, há o texto “Zumví: o arquivo que conserva as memórias de resistências negras”, de José Carlos Ferreira dos Santos Filho. Mais do que a história do arquivo afro fotográfico Zumví, essa é uma reflexão sobre a dimensão política da constituição de coleções fotográficas de famílias negras.

Minhas vozes percorreram os trinta mil metros quadrados do Pavilhão da Bienal. Dias mais frios, outros com muito calor, nos quais percorrer os três pavimentos foi a própria coreografia do impossível.

Os gestos ainda desconhecidos no primeiro movimento ganham forma com relatos de visitas realizadas pela equipe de mediação. Gestar e parir como uma coreografia. 11 Relatos precedidos de pesquisas e suor. Mediação da ginga, da graça e da malícia. As relações com os públicos da exposição e os diálogos com as participantes e as obras da mostra possibilitaram aprofundamentos e a concretude de desejos particulares e coletivos.

Mediação… Desde o início, coreografar outras possibilidades. Escutar demandas de Bienais passadas, de outras profissionais que por aqui passaram, indicaram limites e a necessidade de ultrapassá-los. Escutar nossos próprios desejos, produzir um registro que se tornasse público, que alimentasse novos trabalhos de mediação em instituições culturais.

Não é de hoje que se entende o trabalho da mediação em museus e em espaços culturais a partir de uma confusão que, muitas vezes, situa profissionais da área da educação entre as funções entreter e/ou controlar os públicos. Amador e Jr. Segurança Patrimonial Ltda., dupla de performers cujas ações discutem precisamente esse não lugar e a invisibilidade da presença de trabalhadores nos espaços expositivos. São mediadores e artistas que colaboraram com o texto “Educação ou vigilância?”.

 

Os diversos campos de educação comprometidos com processos de descolonização, e que desafiam de modo crítico estruturas endurecidas e binarizantes, se estabelecem mediante práticas pedagógicas que visam valorizar o diálogo. 12 Por meio desses movimentos instauram-se entradas em espaços que, por direito, deveriam ser garantidas, mas que não o são para que a lógica do racismo epistêmico, por exemplo, possa seguir operando. Com essas presenças, mudanças são geradas, e sabíamos que o movimento iniciado na decisão de garantir a entrada de diversas corpas em um espaço de relevância quando se fala em mediação exigiria uma coreografia de nós, de mim e da instituição.

Françoise Vergès, que colaborou com discussões nos movimentos das publicações educativas indica que a descolonização total, real e concreta do museu não pode ser uma ação benigna. 13 São séculos de assujeitamentos e expropriações. Mesmo existindo e atuando em um entrelugar, 14 estamos submetidas a relações que constituem o mundo. Isso não me paralisa e não nega meu compromisso com processos educativos comprometidos com coletividades e com movimentos de transfluências. 15 

Essa correspondência não tem como objetivo fechar um ciclo, mas sim dar continuidade a uma conversa aberta, com mais sotaques, junto às cidades que receberão o programa de itinerâncias da 35ª Bienal − coreografias do impossível. Sempre foi uma vontade nossa criar um material voltado a esse momento, mas o primeiro desafio foi não adotar um tom de adestramento, como bem nos ensinou Nêgo Bispo na confluência que ocorreu no curso de formação. Esse material é apenas a ponta de lança para uma experiência que virá, que não sabemos, que não vamos conseguir capturar em sua totalidade, e ainda bem que não.

Acreditamos que a dinâmica própria de cada território complementa a experiência da exposição e que encontramos uma parte registrada neste movimento. Esperamos que, cada ação educativa, mediante a relação com os públicos que visitarão as exposições, some, questione, − e por que não? − recuse esse material criando novos movimentos. Projeto que foi construído a muitas mãos e muitas vozes, no qual corrigir rotas, com base na escuta, é o que o movimentou.

 

Frequentemente, a equação TEORIA  ≠ PRÁTICA surge em certas discussões em um tom de confronto, e identificar o diferente de (≠) entre essas duas dimensões pode soar como uma acusação. Em outras situações, compreender essa distância − mais ou menos perturbadora − constitui o objeto perdido, um luto sempre incompleto e incompreendido. A minha existência foi possível porque as vozes que me sonharam, trocaram o sinal e imaginaram a Teoria ≈ Prática, uma relação de aproximação. 

A minha existência é a de, em vez de falar sobre a performance, ser a performance.

 

assessore/as responsáveis pela formação: André Leitão, Bruna de Jesus, Danilo Pera, Giovanna Endrigo, Regiane Ishii, Renato Lopes e Tailicie Nascimento

    • Meu nome ainda é indefinido, continua como um desejo de continuação.
    • O poeta, pensador e líder quilombola Antônio Bispo dos Santos, conhecido como Nêgo Bispo. Desde cedo ele se comprometeu com a transcrição para a escrita da sabedoria de seu povo e com a mediação das relações com o Estado, cuja violência se manifesta, também, por meio da invalidação da oralidade. Nêgo Bispo foi um dos convidados para o curso de formação de mediação da 35ª Bienal e nos deixou em 4 de dezembro de 2023, momento em que esta carta começou a ser escrita.
    • Antônio Bispo dos Santos, A terra dá, a terra quer. São Paulo: Ubu, 2023, p. 102.
    • Meu modo de pensar é um pensar coletivo antes de estar em mim já esteve nelas: publicação educativa da 35ª Bienal de São Paulo: coreografias do impossível. São Paulo: Fundação Bienal de São Paulo, 2023.
    • Leda Maria Martins, Performances do tempo espiralar: poéticas do corpo-tela. Rio de Janeiro: Cobogó, 2021, p. 53.
    • Instalação de Ibrahim Mahama, localizada na entrada da exposição, muito habitada pela programação pública e por visitas mediadas.
    •  Equipe de Educação da Bienal, “Gesto: coreografar a palavra − lambe-lambe”. 35.bienal.org. br, 17 ago. 2023. Disponível em: https://35.bienal.org.br/gesto-coreografar-a-palavra-lambe- -lambe. Acesso em: 2023
    •  Em Meu modo de pensar é um pensar coletivo antes de estar em mim já esteve nelas: publicação educativa da 35a Bienal de São Paulo: coreografias do impossivel. São Paulo: Fundação Bienal de São Paulo, 2023, p. 38-47.
    • Em Aqui, numa coreografia de retornos, dançar é inscrever no tempo: publicação educativa da 35ª Bienal de São Paulo: coreografias do impossível. São Paulo: Fundação Bienal de São Paulo, 2023, p. 52-57.
    • A palavra franco-africana griote é usada para nomear mulheres contadoras de histórias, elementos vivos da tradição oral africana.
    • No último mês de funcionamento da 35ª Bienal, entre uma de nossas vozes, nascia mais um pai. Celebramos e demos as boas-vindas a Ravi.
    • bell hooks, “A construção de uma comunidade pedagógica”, in Ensinando a transgredir: a educação como prática da liberdade, trad. Marcelo Brandão Cipolla. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2017, p. 173-222.
    • Françoise Vergès, Decolonizar o museu: programa de desordem absoluta, trad. Mariana Echalar. São Paulo: Ubu, 2023, p. 58.
    • Diferentemente de um museu, que tem um programa regular de exposições permanentes e temporárias, além de outras atividades em seu edifício-sede, depois do término de cada
    • edição da Bienal, a Fundação Bienal se dedica a diversas outras atividades que ocorrem, em sua maioria, fora do Pavilhão: as mostras itinerantes e a organização do Pavilhão Brasileiro na Bienal de Veneza, por exemplo. No Pavilhão permanecem as equipes, as memórias e os documentos que seguirão para o Arquivo Histórico Wanda Svevo. A descolonização da Bienal seria a descolonização de uma exposição, de um edifício, de um arquivo, de uma fundação?
    • Antônio Bispo dos Santos, op. cit., p. 49.