35th Bienal de São Paulo
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A filha que vira uma ancestral da mãe − A beleza de um coro

Em dezembro de 2022, fui com a equipe de educação ao lançamento de Vidas rebeldes, belos experimentos, 1 que teve a presença da autora Saidiya Hartman em conversa com a curadora Diane Lima. As trocas foram em torno da transformação dos termos do possível, dos gestos que revelam o que está em jogo, das histórias contadas a partir do interior do círculo. “A beleza do coro” é o penúltimo capítulo desse livro. Lembro da avidez pelo mundo que essa leitura intensificou, uma conexão com a demanda visceral por ler outras mulheres que senti durante o puerpério. Em 2019, em uma tarde de leitura enquanto amamentava, a cabeça do meu filho apoiada em meu braço esquerdo, senti meu coração acelerando na busca por bater no mesmo ritmo que o dele. 2 A vulnerabilidade emocional também vem com um ardor intelectual. Uma intensidade que pode acontecer com a leitura, a preparação de uma visita mediada, a escrita.

 

Registros da visita na Cozinha Ocupação 9 de Julho – MSTC, na instalação de Aline Motta e de Rosana Paulino Fotos: © Aline Braga/Fundação Bienal de São Paulo

Começamos a visita na Cozinha Ocupação 9 de Julho − MSTC. Perguntei como tinha surgido o interesse das participantes pela proposta da visita: uma mãe destacou a importância da avó no cuidado de seus filhos, uma filha compartilhou a experiência de luto e cuidado de sua mãe, outra relatou a influência da não linearidade do mover das águas em sua vida. Ali, lemos o sonho de Anderson Feliciano, em que ele era o avô de seu avô. 3 Em roda, entre as faixas “o doméstico é político” e “quem ocupa cuida”, vimos uma fotografia de Carmen Silva, líder do MSTC, e Preta Ferreira, uma de suas oito filhas. No meio do círculo, a criança Jojô mexe no cesto de alimentos do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST).

Os trinta minutos de A água é uma máquina do tempo, de Aline Motta, foram assistidos nessa coletividade. Foi a primeira vez que assisti a essa obra, na íntegra, como parte de um coro. Aline diz: “Estou grávida da minha mãe”, “Uma última respiração sua atravessou o cordão umbilical e saiu dos meus olhos em forma de lágrimas”, “Se eu soubesse teria soprado um par de pulmões no lugar do seu útero”. Quando me levantei e me dirigi à saída da instalação, vi Martina sentada no chão, amamentando Manu. Dali, elas não seguiram mais o trajeto da visita.

Logo em frente, nossa roda foi cercada pelas Mulheres-mangue (2023), de Rosana Paulino. Ali, retomamos a força da fala da artista e de Sueli Carneiro.4 Jojô escala Bel, sente fome e elas retornam para almoçar na Cozinha. A última obra do trajeto proposto é Museum of Dance (Mother Loves to Dance) [Museu da dança (Mãe ama dançar)] (2021), de Dayanita Singh, dedicada aos retratos de Mona Ahmed. Destaco um livro 5 que está sobre a escrivaninha que compõe a instalação. Nele, Ahmed diz: “Eu sou o terceiro sexo, não um homem tentando ser mulher”. A mãe é Mona Ahmed, e a filha, Ayesha. Elas são algumas das filhas, avós e mães que compõem as políticas do movimento da mostra. Entreguei às participantes uma lista de obras com outras (Ahlam Shibli, Archivo de la Memoria Trans, Frente 3 de Fevereiro, Inaicyra Falcão, Quilombo Cafundó, Sarah Maldoror, Sauna Lésbica…) e, certamente, há outras. Nós estamos em todos os lugares. 

A experiência de uma visita mediada é lacunar e imprevisível. Pode haver fome, peito, leite, lágrimas de emoção, choro de irritação. A textura de um tijolo. A possibilidade de uma menina escalar um parlamento! Ali, depois da visita, na obra de Ibrahim Mahama, Bel e Martina se reencontram. Elas trocam experiências de parto. Lembro do trecho de nossas “Correspondências”, do primeiro movimento: “Gestar e parir como uma coreografia, uma experiência de entrega dentro de um contorno”.6 Foi uma honra ter me entregado ao contorno da 35ª Bienal.

    • Saidiya Hartman, Vidas rebeldes, belos experimentos: Histórias íntimas de meninas negras desordeiras, mulheres encrenqueiras e queers radicais. trad. Floresta. São Paulo: Fósforo, 2022. 
    • Algumas das reflexões presentes neste relato tiveram início no texto “Pero las madres sabemos que no − Um coro de leitoras”, escrito por Regiane Ishii para a plataforma elas escrevem. Disponível em: www.elasescrevem. org/pero-las-madres-sabemos- que-no-um-coro-de-leitoras/. Acesso em 2023.
    • Anderson Feliciano, “Uma paisagem habitada pelas infâncias do corpo”, in Aqui numa coreografia de retornos, dançar é inscrever no tempo: publicação educativa da 35ª Bienal de São Paulo: coreografias do impossível. São Paulo: Fundação Bienal de São Paulo, 2023, p. 34-39. 
    • Rosana Paulino e Sueli Carneiro, “Nós não temos um drama, temos uma luta para tocar”, in Meu modo de pensar é um pensar coletivo / antes de estar em mim já esteve nelas: publicação educativa da 35ª Bienal de São Paulo: coreografias do impossível. São Paulo: Fundação Bienal de São Paulo, 2023. 
    • Dayanita Singh, Myself Mona Ahmed. Zurique: Scalo Publishers, 2001. 
    • “Correspondências entre vozes, uma carta para abrir conversas”, in Aqui, numa coreografia de retornos, dançar é inscrever no tempo, op.cit.