35th Bienal de São Paulo
6 Set to 10 Dec 2023
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Quais movimentos compõem as coreografias do impossível?

coreografias do impossível refere-se à construção de espaços e tempos que desejam escapar à rigidez de estruturas e cronologias estabelecidas. São estratégias e políticas do movimento que um conjunto de práticas artísticas e sociais vêm criando para imaginar mundos, ou mesmo acelerar o fim de um mundo onde as ideias de liberdade, justiça e igualdade são realizações impossíveis.

Acreditamos que essas coreografias compreendem, por meio da natureza enigmática dos muitos modos do fazer artístico, a criação de um entrelugar e um entretempo, onde a imaginação pode se expandir e ganhar movimento, mesmo que efêmero.  

Assim, desafiam, recusam ou resistem a práticas cotidianas de violência total, e a seus derivados sistemas simbólicos, que delimitam as noções do possível e do impossível – consequências de um regime racista-colonial e heteropatriarcal que segue mudando, sem deixar de ser o mesmo, desde o século 16.

O termo coreografia nos ajuda também a refletir como a ideia de mover-se livremente permanece no cerne de uma concepção neoliberal de liberdade. Tanto no sentido de regulação e vigilância dos corpos, quanto na conformação de um imaginário social guiado por um sentido progressivo do tempo, que se torna a métrica de sincronização de todas as sociedades, num movimento expansionista em que modernidade e colonialidade são sinônimos.

Os efeitos desta ordem imperativa do tempo ocidental nas mais variadas geografias da terra e do corpo nos levaram a olhar para determinados territórios – físicos e espirituais –, fronteiras e contextos, pondo em relevo as epistemologias, proposições artísticas e estratégias de criação de vida que vêm sendo desenvolvidas pelas extensões das diásporas e dos muitos povos originários que seguem buscando maneiras de reerguer o céu.

Levaram-nos também, consequentemente, a reivindicar uma epistemologia do tempo capaz de romper a noção de história teleológica, substituindo-a pela de múltiplas temporalidades e trançados. Nesses, os fios do passado se entrecruzam e dão sentido a variados presentes, num exercício que ecoa vozes que não cabem em relatos universalizantes. E que ocorrem naqueles lugares que escapam à norma e nos quais a separação entre sujeito e objeto, ator e espectador, estrutura e conjuntura, e a própria literalidade representativa, comumente figurada nas aproximações entre arte e política, perdem capacidade explicativa.

Como o título desta publicação evidencia, buscamos nas performances do tempo espiralar, conceito cunhado por Leda Maria Martins, as bases fundamentais que dão contorno às coreografias do impossível. É nessas temporalidades curvilíneas, nesses ritornelos de um tempo que “bailarina na memória”, que se situam as produções dos artistas que compõem a 35a Bienal de São Paulo. Como veremos em muitas de suas poéticas, o impossível refere-se às realidades políticas, jurídicas, econômicas e sociais nas quais estão inseridas, mas, também, no modo como tais práticas artísticas e sociais encontram alternativas para driblar os efeitos desses mesmos contextos. Por isso, buscamos não caminhar ao redor de um motivo ou por núcleos temáticos, mas antes abrir espaço para uma dança contínua em que podemos coreografar juntos, mesmo na diferença.

Para esta edição da Bienal de São Paulo, propomos a realização de uma publicação educativa de modo processual, por meio de edições que vão se complementando e se revelando ao longo da construção das coreografias do impossível. As autoras, artistas e pensadoras aqui reunidas aceitaram o desafio de atualizar, reler, traduzir ou desenvolver pensamentos e diálogos inéditos a partir das proposições, situações e conversas que viemos construindo para essa pesquisa.

O modo como a equipe de Educação da Fundação Bienal conta, na carta editorial, o seu percurso no desenvolvimento desta publicação – fabulando uma história por meio de pronomes pessoais e recorrendo ao modo subjuntivo para a criação de uma personagem composta de muitas vozes –, é bom exemplo deste procedimento processual e performativo a que nos referimos.

Nossa proposta é que este conjunto de movimentos – modo como denominamos estas publicações educativas –, seja um convite e um chamado à ação, em que as práticas artísticas se tornam fundamentais na construção de conhecimentos baseados em troca, compartilhamento, experimentação e estudo.

Abrir este espaço onde possamos aprender juntos o que ainda desconhecemos, atuando nos limites da tradução e daquilo que não pode ser compreendido sem ser também vivido, é o que nos ensina, por exemplo, Sandra Benites ao esmiuçar em seu texto os sentidos de Nhe’é para os Guarani. E que ressoa na forma como Inaicyra Falcão nos apresenta sua “proposta pluricultural de dança-arte-educação”. Nela, as tecnologias ancestrais que desembocam em exercícios de coletivização dos processos coreográficos constroem uma arqueologia do rodar que encontra na voz a sua própria dança.

Já na edição revisada e atualizada do texto de Françoise Vergès que aqui publicamos, intitulado O museu sem objetos, a autora discute o caso da construção de um museu sobre a história, as línguas e culturas da população da ilha da Reunião, e de como a cultura material está intimamente ligada a projetos coloniais e suas narrativas nacionalistas. A forma como esses contextos éticos incidem diretamente no trabalho/esforço (labor) de criação, regulando, definindo ou (im)possibilitando escolhas estéticas, é também mote central no texto da artista Torkwase Dyson. Ao desenvolver uma prática de desenho abstrato relacionada a uma linguagem de representação arquitetônica e infraestrutural, Dyson amplia os debates sobre racismo ambiental em que “o movimento composicional (as maneiras como o corpo se junta, se equilibra e se organiza para se mover pelo espaço) [torna-se] uma habilidade usada a serviço da autoemancipação em meio a geografias hostis”.

O conjunto de obras da dupla Pauline Boudry e Renate Lorenz, a seu turno, reivindica o direito à opacidade e propõe um estar junto que fortalece as reflexões sobre a descontinuidade temporal e os processos de dominação baseados nas economias conservadoras de gênero e sexualidade. É com o tempo também que caminha Anderson Feliciano, que fabula com as palavras uma paisagem habitada pelas infâncias do corpo e sublinha o direito à poesia como uma prática radical de resistência.

O texto de Thiago Vinícius de Paula da Silva, da Agência Solano Trindade, recupera percepções importantes para entendermos como pessimismo, frustração, esperança, imaginação e solidariedade sustentam a promessa de igualdade como um projeto moderno irrealizável. Ao reverenciar Tia Nice e os coletivos periféricos da cidade de São Paulo, o autor destaca a importância das práticas e equipamentos culturais, afirmando que “a gente coreografa uma dança sem chão”.

Por fim, se essas práticas produzem rupturas nos espaços a que pertencem, quando aqui reunidas, o que criam? Quais consensos e dissensos as coreografias do impossível, quando em diálogo no espaço, nos possibilitam adentrar? Nesse sentido, para nós, esta publicação educativa desenvolve um papel central. Ela oferece ferramentas de mediação que nos possibilitam inventar e descobrir novas e desconhecidas coreografias, capazes de mudar a direção dos nossos movimentos de aprendizado.