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Interioridade negra: Notas sobre arquitetura, infraestrutura, justiça ambiental e desenho abstrato

Torkwase Dyson, Untitled (Becoming 01–Becoming 200) [Sem título (Tornando-se 01–Tornando-se 200)], 2016-2021
Guache e caneta sobre papel. Série composta de 200 partes, 30,5 cm × 22,9 cm cada
©Torkwase Dyson / Cortesia Pace Gallery

1. Desenho_001_1865

Em ambientes construídos ou naturais, cada objeto ajuda a definir nossas condições de movimento. O projeto1 de nosso mundo físico informa os métodos através dos quais o movimento emerge e a estratégia espacial se organiza. Para pessoas negras, o ato de se mover em um dado ambiente é acompanhado de questões de pertencimento e de uma autodeterminação de visibilidade e semiautonomia. Isso significa que, para pessoas sistematicamente desprovidas de direitos, o movimento composicional (as maneiras como o corpo se junta, se equilibra e se organiza para se mover pelo espaço) é uma habilidade usada a serviço da autoemancipação em meio a geografias hostis. Além disso, o cérebro decifra, mede, categoriza e entende tanto formas físicas imediatas quanto formas físicas distantes relacionadas às estruturas espaciais definidas por condições de poder.

Essa relação entre interior e exterior – experiências geográficas da mente negra/do corpo negro – tem uma ligação indissolúvel com as terras e águas crivadas de histórias arquitetônicas e infraestruturais destinadas a concentrar o controle total sobre recursos naturais limpos em sistemas conservadores brancos, corporativos e hipercapitalistas. Pessoas racializadas e desprovidas de direitos herdaram esse isolamento geográfico e podem chamá-lo de racismo ambiental. Nesse momento de globalização acelerada devido à tecnologia, o racismo ambiental é intensificado pelas mudanças climáticas decorrentes da atividade humana, ou pelo que é chamado de Antropoceno. O legado do racismo ambiental e os atuais traumas advindos das mudanças climáticas globais fazem do planejamento espacial – representação e projeto arquitetônicos e infraestruturais – uma preocupação urgente para mim no desenho abstrato contemporâneo.

 

2. Notas: Sobre planejar estratégias espaciais negras na qualidade de usuários (em processo)

A. Foco_

Minhas ações concentram-se em desenvolver uma prática refinada de desenho abstrato numa linguagem de representação arquitetônica e infraestrutural que se proponha a participar de processos de desenvolvimento espacial e de geografias mais habitáveis. No campo do desenho, elaboro composições, diagramas, traços, superfícies e modelos visando esses objetivos, sempre tendo em mente o movimento do corpo humano. Cada desenho é uma forma de análise, com um olhar para as eficiências em nossos atuais ambientes construídos e naturais e para as relações que pessoas racializadas têm com tais ambientes.

B. Microssujeitos_

Diques, pontes, lençóis freáticos, edifícios, ferrovias, fossas sépticas, represas, casas, armazéns, cabos, canos, prados, bunkers, trens, navios, montanhas, rios, calçadas, esquinas, faixas de pedestres, escadas, muros. À medida que transitamos em ambientes construídos que não projetamos, mas que percebemos a partir de nossas experiências, a autoridade sobre a mente/corpo de uma pessoa em meio ao labirinto de formas, espaços e objetos é uma questão de raça, composição e materialidade. Desde a forma concreta dos diques cheios de falhas de Nova Orleans até as três placas de concreto de 152 centímetros quadrados da calçada sob o corpo de Eric Garner2, devemos questionar a infraestrutura atual, propondo novos projetos que solucionem condições ambientais avançadas, considerando nossos futuros políticos e materiais.

C. Macrossujeitos_

Zonas arquitetônicas, padronização global, fibra ótica, sistemas de abastecimento de água, telecomunicações, aviação, OTAN, Banco Mundial, ferrovias, corporações, empreendimentos privados, indústrias. Quando transitamos por esses sistemas operacionais infraestruturais que informam nossos ambientes construídos, mas que, com frequência, são formas arquitetônicas não fixas, aprendemos por meio de um tipo diferente de experiência de usuário que a soberania sobre o território, a terra e o chão é uma questão de dignidade.

A representação arquitetônica e infraestrutural me deu voz expressiva em diálogos sobre movimento espacial, desenvolvimento, organização e projetos. É uma linguagem visual capaz de descrever ou ilustrar macroideias de ordem sistêmica, ou as profundas estratégias espaciais de fugitividade. No contexto do desenho abstrato, planejar futuros e investigar os métodos históricos persistentes de sobrevivência espacial são linhas diretas de ação/participação na justiça ambiental. A habilidade de criar desenhos representacionais que descrevam espaços mais habitáveis e como nos sentimos em relação a eles, ou que descrevam o espaço existente que precisamos conhecer e cuja capacidade operacional precisamos entender e como nos sentimos em relação a ele, é fundamental para criar condições para a transformação ambiental. A mudança está acontecendo agora, e eu considero o desenho abstrato contemporâneo uma parte importante de nosso atual movimento de preparação.

 

Torkwase Dyson
Untitled (Becoming 01–Becoming 200) [Sem título (Tornando-se 01–Tornando-se 200)], 2016-2021
Guache e caneta sobre papel. Série composta de 200 partes, 30,5 cm × 22,9 cm cada
© Torkwase Dyson / Cortesia Pace Gallery

3. Pensamento composicional negro: Entre a representação e o desenho abstrato

Na minha prática, o desafio perfeito de criar um desenho abstrato refinado significa ter plena consciência das linhas e formas que reconhecem as habilidades de corpos negros de habitar e negociar expressivamente construções de espaço e materialidade em tempo real. Outro desafio é produzir composições nas quais a geometria da imagem e do objeto reconheça as capacidades intuitivas da mente de articular as habilidades do espaço como forma. Desenvolvi esse modo de desenhar para responder às condições em que diversas ordens sistêmicas de abstração política foram utilizadas a serviço da exploração ambiental.

A. Eu me pergunto: como as pessoas negras sobrevivem atualmente à abstração, considerando que o escopo, a escala e a densidade da matéria estão mudando ao nosso redor devido à mudança climática? Começo a responder ao olhar para o que chamo de pensamento composicional negro. O desenho abstrato pode servir à jornada intelectual e psicológica que busca trazer o pensamento composicional negro para mais perto. Muito perto, lá para dentro. A partir de um entendimento negro-dentro-do-negro [black-inside-black], observo as superfícies com a mente completamente consciente de que forma é poder. À medida que começo a elaborar forma, linha, movimento, peso, escala, proximidade e perspectiva, as representações dos sujeitos oscilam entre imagens diagramáticas em escala e desenhos expressivos. Na feitura, compreendo que, na integração de formas configuradas em condições de justiça espacial negra, começo a desenvolver composições e projetos que respondem aos materiais. Aqui, eu desvendo o poder da representação abstrata enquanto interajo com as implicações emocionais do espaço do projeto. Essa é a tensão crítica no desenvolvimento de soluções que se estendem para além da área superficial do desenho e da empatia e desembocam em aplicações mensuráveis e eficazes. Assim emergem ideias e capacidades relacionadas ao modo como inventamos em resposta às diversas condições materiais, geográficas e políticas que herdamos. Começo a trabalhar nos desenhos a partir de um estado de profunda subjetividade, ao mesmo tempo que alinho meus pensamentos às estratégias espaciais negras projetadas e construídas para aumentar a habitabilidade. Essas referências vão desde as línguas nômades do povo Taureg até o planejamento espacial da arquitetura camaronesa, bem como às histórias de Anthony Burns e Assata Shakur, para nomear apenas algumas. Ao levar essas histórias em consideração, começo a entender que sobreviver à abstração por meio da abstração é meu atual projeto ambiental.

B. A abstração a que me refiro é também a abstração política utilizada para implementar agendas racistas hipercapitalistas e conservadoras brancas em geografias negras e demais geografias racializadas. Por exemplo, a história da polícia e das leis de vadiagem, a jurisdição extraterritorial e a exclusão da subjetividade nas discussões acerca do Antropoceno são sistemas de abstração política que põem em prática o conservadorismo econômico. Esses sistemas continuam a traumatizar com o avanço do nosso deslocamento forçado para fora e para longe de terras e águas que nos dão vida e formam nossas identidades. Esse legado deixado pelo movimento forçado inclui o tráfico intercontinental de pessoas escravizadas, o terrorismo ambiental constituído por linchamentos e pela Ku Klux Klan, a queima de cidades e igrejas negras, a mineração de carvão, infraestruturas que desmoronam devido ao desinvestimento e ao subinvestimento, a revolução industrial e nuclear, a contaminação por resíduos tóxicos provenientes de escoamentos industriais, o aumento do nível do mar, as revisões dos limites distritais eleitorais nos Estados Unidos, as leis de toque de recolher, a diminuição da biodiversidade, as secas e a colonização da água por indústrias extrativistas. A abstração política define as condições geográficas para as desigualdades espaciais e ambientais em todo o globo. Além disso, as maneiras pelas quais vemos, escrevemos e conversamos sobre tais desigualdades devem ser relacionadas à nossa atual crise climática. Deve haver uma narrativa mais ampla da subjetividade negra em relação ao Antropoceno. O projeto do Antropoceno não existe sem a terra, o corpo e o trabalho de pessoas racializadas no experimento do projeto moderno. A ausência de políticas trabalhistas negras relacionadas aos recursos naturais e às antigas formas de arquitetura, agricultura e engenharia é uma forma de abstração e continua a suscitar uma vulnerabilidade que já é extrema por meio de mais apagamentos. O desenho abstrato permite uma discussão pontual dessas histórias estruturais e de nossa participação nelas, e pode também preparar nossa mente para compor com o espaço e a materialidade que definirão nosso futuro.

 

4. Fluxos de informação ambiental (em andamento)

A infraestrutura, o espaço arquitetônico e o abuso dos recursos naturais continuam a fazer da habitação, da atenção plena [mindfulness] e do movimento questões políticas urgentes para corpos negros. Tais ideias fazem parte de meu trabalho com Danielle Purifoy e de sua pesquisa sobre a propriedade/posse negra de terras por pessoas negras [black landownership]; a preservação e a perda de terras; o desenvolvimento econômico local; a imposição de encargos ambientais e a prestação de serviços ambientais – particularmente o acesso à água potável e ao saneamento básico. Enquanto escrevo este texto, o presidente Obama3 está apertando a mão de Donald Trump, o novo presidente eleito dos Estados Unidos da América. É de conhecimento geral que Trump é um negacionista das mudanças climáticas (mas, em uma entrevista recente ao The New York Times, ele evitou a questão, dizendo que tem a “mente aberta” e que há “alguma relação” entre atividade humana e mudança climática). Trump é um grande apoiador das indústrias petroleiras e de gás e pode revogar o Acordo de Paris, um pacto internacional apoiado pelo governo Obama para enfrentar as mudanças climáticas. Embora o Acordo de Paris4 avance pouco no combate ao aquecimento global, Trump pode piorar a situação ao pressionar por uma drástica diminuição nas regulamentações da emissão de carbono e por uma maior expansão das indústrias extrativistas. Donald Trump aplicou sua ideologia cruel e perigosa sobre a ciência. Enfrentamos agora, mais do que nunca, o aumento das temperaturas, a diminuição do período de plantio, secas e ondas de calor, o aumento do nível do mar e a intensificação de furacões. As alterações climáticas agravam todas as outras desigualdades. Devemos projetar e planejar uma economia baseada na baixa emissão de carbono, porque o ambientalismo, a geografia e a raça estão diretamente conectadas. Enquanto escrevo estas notas, a COP225 – uma conferência na qual países de todo o mundo estão trabalhando em prol da justiça ambiental e do crescimento econômico por meio de fontes renováveis de energia– está acontecendo em Marrakech. Neste exato momento, o continente africano continua sofrendo severamente com os impactos das mudanças climáticas. Dado o acúmulo de seus recursos naturais e as áreas de extração concentrada, o continente está particularmente vulnerável aos aumentos dos níveis de CO2 e aos seus efeitos nefastos, tais como secas, inundações, safras irregulares e ecossistemas em declínio. Tudo isso acontece enquanto o continente segue sendo economicamente devastado pelas indústrias de petróleo e gás que se recusam a reconhecer as interseções entre produção, lucro, corpo e espaço. As indústrias corporativas assumem pouquíssima ou nenhuma responsabilidade pelas experiências vividas das pessoas que residem nessas zonas de extração. Esse é um dilema que assume muitas formas em todo o continente. A partir de minha própria pesquisa e experiência, sei que são profissionais da engenharia e da arquitetura do Sul Global que lideram a luta por novas tecnologias para lidar com a fuligem ambiental produzida pelo consumo global.

Nos Estados Unidos, ativistas ambientais e pessoas que apoiam o povo Sioux tentam impedir o Dakota Access Pipeline, um projeto de oleoduto de aproximadamente 1.800 quilômetros de comprimento e 76 centímetros de diâmetro financiado pela Energy Transfer Partners, empresa na qual Trump tem uma série de investimentos financeiros. Kelcy Warren, CEO da Energy Transfer Partners, diz: “Tenho plena certeza de que o oleoduto será aprovado pelo governo Trump”. Um derramamento de petróleo desse oleoduto contaminaria permanentemente o rio Missouri, uma importante fonte de água para milhões de pessoas que vivem ao longo de suas margens. Apoio o povo Sioux de Standing Rock e os grupos de ativistas ambientais que tentam impedir o oleoduto e lutar pelo direito dos povos nativos à soberania.

 

Torkwase Dyson
Untitled (Becoming 01–Becoming 200) [Sem título (Tornando-se 01–Tornando-se 200)], 2016-2021
Guache e caneta sobre papel. Série composta de 200 partes, 30,5 cm × 22,9 cm cada
© Torkwase Dyson / Cortesia Pace Gallery

5. Uma resposta: O Studio South Zero e a Escola Wynter-Wells de Desenho pela Justiça Ambiental

O Studio South Zero6 (SSZ) é um pequeno estúdio itinerante de arte movido a energia solar que construí para atravessar os Estados Unidos, conhecendo locais geográficos impactados pelas mudanças climáticas e pela injustiça ambiental. Foi a integração entre desenho abstrato, projeto e tecnologia que me levou a fazer esse estúdio errante. Por natureza, essa prática nômade gera interdependência ambiental e solitude. Usar esse espaço permite receber tudo que vem com ele: o mundano, o complexo, os medos e a beleza. O SSZ é um espaço vivo e fluido, um estilo de vida que torna possível não apenas que eu faça minha arte, mas também que apoie projetos de outras pessoas. Trabalhar no SSZ inspirou meu novo projeto, a Escola Wynter-Wells de Desenho pela Justiça Ambiental, com base nos trabalhos de Sylvia Wynter e Ida B. Wells. Trata-se de um projeto conceitual que combina as preocupações curriculares da arte com as teorias de projeto de geografia, infraestrutura, engenharia e arquitetura. Meu objetivo é pesquisar e montar um currículo experimental e uma linguagem formal focada nas ideias progressistas de representação espacial diagramática e expressiva. Utilizo duas estratégias de representação espacial: desenhos de elevação (as projeções de um objeto quando ele é visto de frente) e desenhos de seção (a projeção de uma seção de corte de um objeto). Ambas as abordagens se prestam simultaneamente à análise da ciência, da fragmentação e do local, bem como à cultura da engenharia espacial, da arquitetura e da geografia. Trabalharei lado a lado com essas ideias de desenho para produzir novas representações sistêmicas que considerem técnicas de participação no planejamento espacial rumo à justiça ambiental.

 

Assista ao vídeo de Torkwase Dyson comentando seu trabalho I Belong to the Distance [Eu pertenço à distância], 2019, apresentado na 14ª Bienal de Sharjah (Emirados Árabes Unidos)

 

 

    • No original em inglês, design. Optamos por traduzir como “projeto” para abranger o sentido de projeto arquitetônico/espacial/ geográfico. [N.T.]
    • Referência ao jovem negro, Eric Garner, assassinado por estrangulamento pela polícia em Nova York em 17 de julho de 2014. Aqui a autora utiliza o caso como uma referência chave para pensarmos sobre as estruturas físicas que edificam o racismo ambiental. [N.E.]
    • Este texto foi escrito em 2017, quando Barack Obama, presidente estadunidense de 2009 a 2016, passava o comando do governo para Donald Trump, eleito presidente em 2016. [N.E.]
    • O Acordo de Paris (2015) é um compromisso internacional discutido por 195 países com o objetivo de minimizar as consequências do aquecimento global. Ao tomar posse como presidente do Estados Unidos, em 2016, Donald Trump anunciou a saída de seu país do acordo. Contudo, em 2021, ao assumir a presidência dos Estados Unidos, Joe Biden, que derrotou Trump nas urnas em 2020, renovou o compromisso de seu país com o acordo. [n.e.]
    • 22a Conferência das Nações Unidas sobre as Mudanças Climáticas (COP), realizada em 2016 em Marrakesh, Marrocos. [N.E.]
    • Ver mais em: <torkwasedyson.com/ssz>.

About the author

Torkwase Dyson nasceu em Chicago (EUA) e descreve- se como uma pintora que usa vários meios para explorar as conexões entre ecologia, infraestrutura e arquitetura. A artista considera as relações espaciais a partir de perspectivas históricas e contemporâneas. Através de obras abstratas, investiga as formas como o espaço é percebido e negociado, particularmente por corpos negros e racializados. Seus desenhos, pinturas, esculturas e performances exploram estratégias de emancipação para o enfrentamento de estruturas opressoras e a criação de geografias mais habitáveis. Como afirmou em uma entrevista: “Temos de fazer formas que celebrem as possibilidades”.8

8“An Artist’s Gateway to Freedom and Possibility”, The New York Times, 10 nov. 2022. Tradução nossa. Disponível em: New York Times. Acesso em: 12 jan. 2023.

References

SANTOS, Inaicyra Falcão. Corpo e ancestralidade: uma proposta pluricultural de dança-arte-educação. Curitiba: CRV, 2021.
SODRÉ, Muniz. A dança como vetor de alegria. Escola de Comunicação da UFRJ, 20 abr. 2021. Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=Vmr-VLhT5t4>.
______. Samba, o dono do corpo. 2. ed. Rio de Janeiro: Mauad, 2007.