Melchor María Mercado
Chegamos a uma vitrine dedicada à obra Álbum de paisagens, tipos humanos e costumes, do artista boliviano Melchor María Mercado. Estão expostos fac-símiles de uma parte das cento e quarenta e uma ilustrações, originalmente feitas com aquarela e tinta colorida sobre papel branco. Cada uma mede 20,5 centímetros por 33 centímetros e estão dispostas umas ao lado das outras.
As aquarelas foram produzidas entre 1841 e 1869, período de início da República da Bolívia, embora tenham sido exibidas pela primeira vez mais de um século depois, em 1991. Na época de sua criação, predominavam os relatos sobre a vida nesse país de uma perspectiva europeia sobre as colônias. As ilustrações de Mercado constituem um conjunto valioso justamente porque buscaram contar uma história da Bolívia a partir da perspectiva de uma pessoa boliviana. Afinal, uma história contada por alguém que a viveu seria muito diferente daquela contada pelos colonizadores. Como diz Beatriz Martínez-Hijazo para o catálogo desta Bienal, “indo na contramão da historiografia tradicional e do gosto neoclássico predominante, Melchor María Mercado tece outras formas de ‘narrar a nação'”.
Melchor María Mercado nasceu na cidade de Sucre, Bolívia, no ano de 1816, e faleceu em 1871. Ao longo de sua vida, exerceu diversos ofícios, tanto científicos quanto artísticos. Seu interesse por pintura, pela história natural e pela política o levou a percorrer todas as regiões do território boliviano, o que possibilitou a realização desse importante trabalho iconográfico.
As ilustrações revelam aspectos da cultura, arquitetura e natureza boliviana: costumes e hábitos das pessoas, sobretudo de personagens populares em cenas da vida cotidiana; detalhes das suas ferramentas e instrumentos de trabalho; trajes típicos; artefatos de suas festividades; cosmologias, mitos e tradições. Sua obra também evoca o entorno natural, como as montanhas, os rios, as plantas e os animais, e paisagens rurais e urbanas, como cidades, povos, jardins, igrejas e monumentos. Aqui, o que era marginalizado pelo poder colonial passa a protagonizar a narrativa: navegantes do lago Titicaca, mulheres “del oriente”, cegos, cholas, mestizas, indígenas, animais… Uma narrativa do povo boliviano para o povo boliviano.
Em uma destas ilustrações estão cinco figuras fantásticas, uma ao lado da outra no mesmo plano do desenho. Sobre elas está escrito com uma caligrafia preta e adornada “República Boliviana. Paz” e no rodapé, em letras menores, está escrito “danzantes”, o que indica que elas estão dançando. Todas têm a cabeça desproporcionalmente grande em relação ao corpo.
A primeira delas, da esquerda para direita, tem o rosto circular cercado por babados também circulares, o que remete às representações do sol. Ela veste uma roupa preta e justa, cinto vermelho e botas brancas de cano alto. Um de seus braços aponta para cima e o outro para baixo.
A segunda figura tem um grande sorriso, em seu rosto estão vários quadradinhos azuis, como se fossem janelas abertas para o céu. Seus cabelos são compridos, loiros e cacheados. Sua camisa tem faixas verticais coloridas e a calça é preta. No lugar da mão esquerda, ela tem um longo gancho de pirata e segura um solzinho com a mão direita.
A terceira figura ocupa o centro da ilustração, ela está de perfil voltada para a esquerda. Sua cabeça é rosada, sem cabelos e com dois chifres. Seus olhos são amendoados, o nariz protuberante e os lábios bem vermelhos. Ela segura entre os lábios o caule de um fruto verde que está acima de sua cabeça. Veste camisa branca e calça azul.
A quarta figura tem uma cabeça de boi de pelagem marrom, com longos chifres. Está descalça, veste uma camisa listrada colorida e short preto. A última figura está quase de costas. Tem uma cabeça de cavalo com expressão triste e veste uma camisa preta sem mangas e uma bermuda preta de barra branca.
Importante notarmos que alguns dos elementos pictóricos parecem antecipar o realismo fantástico e suscitam reflexões políticas. Nas ilustrações, por exemplo, é comum que nobres colonizadores sejam retratados sendo decapitados; ou que comunidades bolivianas apareçam em lugar de superioridade em relação aos colonizadores. Por outro lado, Mercado também suscita uma reflexão sobre as relações humano-animais, muitas das vezes invertendo as posições – pessoas sendo devoradas por bichos ou em posição de animais de carga.