Aurora Cursino dos Santos
Aurora Cursino dos Santos nasceu em 1896, em São José dos Campos, e faleceu em 1959, em Franco da Rocha, São Paulo.
Desde a juventude, Cursino se interessou por música, literatura e artes plásticas. Fugindo de um casamento forçado e indesejado, que durou apenas um dia, exerceu diversos ofícios, dentre eles os de prostituta e empregada doméstica. Viveu na cidade do Rio de Janeiro e provavelmente esteve em alguns países da Europa, como Portugal. Em São Paulo, teve sua trajetória marcada pela internação em hospitais psiquiátricos, especialmente o de Juquery, em Franco da Rocha. Ali recebeu os diagnósticos de “personalidade psicopática amoral” e “esquizofrenia parafrênica”. Ao mesmo tempo, ela participou de oficinas de pintura e foi aluna da Escola Livre de Artes Plásticas. Não à toa, grande parte das pinturas de Cursino foram feitas sobre papel-cartão, material que havia no Hospital do Juquery.
A obra de Aurora tem um caráter autobiográfico. Muitas de suas imagens retratam, em forma de denúncia, aspectos que perpassam sua própria trajetória, como a objetificação das mulheres, abusos e a violência das instituições psiquiátricas da época. Nas telas, é comum que elementos pictóricos delineados por traçados espessos e livres sejam combinados com escritos, estimulando-nos a refletir sobre as relações entre as artes visuais e a prosa.
Conheceremos agora uma das obras da artista, Sem título e sem data, mas que podemos referenciar como “Aliança Superior da Mulher da Vida”. Ela é feita com tinta óleo sobre papel, e possui frente e verso. Suas dimensões são 60 centímetros de altura por 50 centímetros de largura.
Na frente, Cursino retrata cinco pessoas, duas mulheres e três homens, todos de pé. As mulheres estão ligeiramente mais à frente dos homens. No fundo e também nos personagens, predominam tons quentes de amarelo, laranja, vermelho e preto, contrastados por detalhes pontuais em azul e verde.
Da esquerda para a direita, há uma mulher de pele branca, cabelos escuros e cacheados até os ombros. Ela usa um vestido acinturado até as coxas, na cor bege, com o desenho de dois triângulos – um laranja sobre o púbis, outro azul entre os seios. Seus olhos grandes e melancólicos observam o entorno. Ao lado dela está a outra mulher. Ela tem pele branca e cabelos loiros, usa um vestido branco com o desenho de dois triângulos, um sobre o púbis, em vermelho, e outro entre os seios, em amarelo. Ela está com as palmas das mãos encostadas nas bochechas do rosto, expressando assombro.
Ao lado está um homem de pele branca, cabelos castanhos curtos e bigode. Seus olhos são marcantes, desenhados com traços grossos em preto. Ele veste calça e terno azul e uma gravata amarela e rosa. Seu braço esquerdo está estendido ao alto. Com a mão segura uma vareta preta e fina. Sua expressão é de autoridade.
O próximo homem tem pele branca, bochechas bem vermelhas, cabelos pretos e bigode. Usa uma calça vermelha e um terno bege, com uma gravata rosa e azul. Ele olha para frente, com uma expressão ligeiramente melancólica.
O último personagem é um homem também de pele branca, cabelos curtos e pretos e bochechas rosadas. Ele usa calça e terno verdes, com botões pretos e gravata vermelha. O verde de seu terno se espalha para o fundo, atrás do homem, contrastando com os tons quentes do restante da tela. Sua expressão é séria.
No topo da obra há uma frase escrita em letras de forma, predominantemente vermelhas e pretas, que diz “Aliança Superior da Mulher da Vida”. A frase inclui correções, como no “L” em aliança, ou a inclusão da sílaba “RI” em “supeor”, resultando na palavra “superior”. A vara que o homem de terno azul hasteia atravessa a palavra “vida”, como se a cortasse ao meio. Ao lado da frase, há pontinhos vermelhos e pretos, que se desdobram em manchas feitas com pinceladas vigorosas.
O verso da obra mostra as caixinhas retangulares da marca Chiclets, dispostas simetricamente em série. Cada caixinha é formada por um fundo rosa e um círculo vermelho coberto no centro por um retângulo branco. Sobre ele, a letra “C” em preto e tamanho destacado, com o restante do nome da marca escrito em letras pequenas, pretas e cursivas, em estilo antigo. O verso desta obra de Cursino demonstra que o suporte utilizado é um papelão de onde seriam destacadas as caixinhas para serem montadas e, posteriormente, utilizadas para embalar as gomas de mascar.
Como diz Tatiana Nascimento para o catálogo desta Bienal, Cursino nos traz “uma dor de muitos nomes: machismo, misoginia, patriarcado, opressão, violação, desrespeito, desumanização. Mas parece que, além de tantas facadas, os tantos olhos que pintou buscam vestígio desse mundo-sonho em que mulheres, qualquer profissão que tenham (ou não), independentemente do quanto tentem os muros das casas de patroa, das celas manicomiais, estrangular, sufocar, silenciar… Um mundo em que qualquer mulher, por mais indigna que seja considerada, ‘psicopática amoral’, possa prever-se um futuro feliz”.